Talvez seja uma pergunta supostamente tão simples e pretensiosa, mas que soa não menos absurda: será que a razão venceu? De fato, não podemos negar que o homem contemporâneo ou moderno goza de avanços tecnológicos outrora impensáveis ou simplesmente destituídos sequer de uma suposta aura de possibilidade. Pode-se transformar a natureza de um modo tão profundo que o próprio homem jamais sonharia possuir essa tal e incrível capacidade. Nesse sentido, a razão realmente conseguiu ofertar ao ser humano um avanço inominável, tornou-se um instrumento fantástico capaz de proporcionar os desejos supostamente irrealizáveis. Com ela, a razão, o homem alcança aquilo que a sua mão não lhe permite ofertando à sua mente poderes incomensuráveis. Não obstante, é essa mesma capacidade que o distanciaria de si mesmo impondo-lhe algo que o rejeita, que o faz desconhecer-se, enfim, que o aliena. Sim, o ser humano hodierno tem alcançado uma individualidade que o transforma, que o regenera até certo ponto, que o leva a lugares ou estádios jamais sonhados por ele mesmo. O ser humano, paulatinamente, vem-se tornando mais coeso em suas determinações, em suas escolhas, em sua própria vida, vem-se tornando um sujeito no real sentido da palavra se comparado a outros períodos históricos, como na Idade Média, por exemplo, em que falar em autonomia era quase uma heresia passível de condenação à danação eterna. Sim, o homem de hoje goza de benesses que o homem grego, com toda sua transformação política, não poderia ter, não apenas nas áreas das humanidades como também nas tecnológicas ou ainda naquilo que servia de auxílio no dia-a-dia. Atualmente se vive mais e melhor, dizem e re-afirmam os clichês propagandísticos dessa coisinha moderna chamada tevê que consegue seduzir tão fatalmente o passivo assistente. Mas, talvez seguindo o mesmo erro de Leibniz, o mundo de hoje, por mais que seja dotado de mil e uma maravilhas, de grandes vantagens se comparado ao humano do passado, ainda assim, esse mesmo ser humano incorre por perseguições ao seu espírito, à sua liberdade, à sua autonomia, e, por mais que se viva em um mundo que oferte todas as maravilhas necessárias à sua libertação enquanto sujeito efetivamente individual, no dizer adorniano, ainda assim se vê preso a novos grilhões. Na realidade, mais parece que se está em um mundo no qual os cerceamentos apenas mudaram de cor, de forma, de aparência, e pior, travestem-se como coisas pertencentes ao ser humano, como algo necessário, natural, conseguindo desse modo passar despercebido do olhar humano. A tecnologia desenvolvida atualmente exerce a mesma função que o pelourinho para os negros, óbvio que não mais de forma evidente e fácil de perceber, agora se dá em um aspecto mais cruel, pois prefere extirpar a vida do indivíduo – diga-se de passagem, de qualquer etnia ou credo – de uma maneira mais lenta e perversa. O desemprego, poderosa e real entidade, configura-se como o carrasco que com o seu chicote, a obrigatoriedade do sujeito aprender alguma novidade tecnológica e assim adaptar-se ao mercado de trabalho, à sociedade administrada, golpeia constantemente o escravo que não tem idéia da sua condição de escravo. O humano tornou-se mais sujeito para enquadrar-se em uma nova forma de aprisionamento, é o "escravo voluntário", obrigado a trabalhar na sociedade de trabalho que o ilude com a concepção de que ter um bom emprego é algo de uma naturalidade cósmica. Se quiser não posso ter um emprego, mas se o fizer não posso gozar daquilo que o Direito Humanitário insiste em deflagrar como universal. Essa nova forma de escravização caçoa desse devaneio universal. Uns ainda propagam que o trabalho dignifica o homem, mas quem dignifica o homem senão ele mesmo? De que me serve um trabalho que me é obrigatório, que conspurca gota à gota o meu espírito, o meu ser, a minha vontade de viver? Tudo nessa sociedade do trabalho está voltado para o trabalho, nem o lazer que desembocaria em um deleite consegue fugir de tal condição. Até os programas de divertimento, de entretenimento, de simples e necessária diversão estão todos direcionados para um divertimento lapidado que possui como único objetivo renovar as energias ou dar um pouco mais de energia a esse trabalhador sem consciência de si para re-ingressar em mais uma semana enfadonha, com aquele chefe que o persegue, com aquele salário que mais o afasta da alegria de viver – se é que ele pode se dar a esse luxo – acreditando que tal situação é sintomática de um momento melhor que está por vir em sua vida sem sentido. Absolutamente nada é gratuito. O seu instinto é sacrossantamente exercitado dia-a-dia obrigando-o a esquecer de que ele nasceu sim com uma incrível capacidade de transformação das coisas e do mundo que o esbofeteia.
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Os textos que você escreve são ótimo. Eu já era fascinado por filosofia, agora ainda mais.
ResponderExcluirMuito obrigado, caro Emílio. Espero que continue gostando e se não gostar, continue comentando e expondo sua análise.
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