domingo, 19 de novembro de 2017

Um comentário sobre o mito grego e sua relação com o mundo ocidental

Breve Apanhado Histórico

É notório o legado grego sobre a civilização ocidental. Estudos e mais estudos sobre o referido assunto somente tem fortalecido a concepção de que devemos muito à cultura grega a começar pela arte, pela filosofia, pela dramaturgia e pela literatura. A literatura mostra-se como uma área onde se nota de maneira mais evidente a marca do legado grego, a começar pela forma de escrever da esquerda para direita e de cima para baixo. No entanto, talvez a maior contribuição de fato marcante tenha sido a forma como nós, ocidentais, refletimos ou pensamos. Por incrível que pareça, a maneira como pensamos, o modo sistemático de organização das idéias é fruto também da influência do povo de Homero, e daí talvez todas as outras coisas referentes àquela cultura – e à nossa – decorreram de um elemento intrínseco denominado de “razão”, material primordial para o surgimento da filosofia, das artes e das ciências que até hoje sentimos algum tipo de efeito.

Não obstante, uma questão permanece ainda hoje sem resposta: teria o povo grego demonstrado essa aptidão à razão ou às artes em geral de uma maneira única e exclusiva na história da humanidade – a teoria do “Milagre Grego” – ou teria ele sentido as influências de outros povos e, portanto, de outras culturas e que paulatinamente foi se enquadrando à realidade grega – a teoria dos Orientalistas –, desse modo, adaptando-se? Os Ocidentalistas são os teóricos que acreditam na ideia de que aquilo que houve na Grécia e que marcou profundamente a nossa cultura foi fruto exclusivamente dos gregos, eles e somente eles teriam sido os únicos responsáveis pela criação de uma forma de pensar até então inédita. Em contrapartida os Orientalistas acreditam que houve sim uma interferência ou influência de outros povos sobre a cultura grega, influências essas oriundas principalmente do Oriente e que os gregos somente teriam adaptado à sua maneira, à sua realidade. No entanto, tanto os Ocidentalistas quanto os Orientalistas crêem em algo comum: os gregos de fato foram o povo onde as principais características do ocidente se desenvolveram e que marcaram e ainda marcam toda uma população de um lado do hemisfério.


Podemos começar a perceber o início de tal influência através da mitologia grega. Note-se que os gregos foram o primeiro povo a adorar ou a divinizar a imagem puramente humana, sem a mistura entre animais fantásticos ou seres grotescos. O grego inova ao conceber a forma humana como algo relacionado à beleza, à perfeição, enfim à luz (razão), enfim, os gregos inauguram assim o antropomorfismo, deuses geralmente dotados de forças da natureza, mas que apresentam uma aparência puramente humana.

Os deuses agora são vistos como “super-humanos”, possuem uma relação profunda com a luz, o dia ou simplesmente com a clareza, sempre demonstrando alguma razão, algum motivo quando realizam algum ato que interfira na vida dos mortais. Tal predisposição notadamente remonta à necessidade que os gregos possuíam em racionalizar as coisas que aconteciam ao seu redor, a começar pela sua mitologia. Os gregos, nesse sentido, buscavam uma unidade de compreensão lógica ou racional que passasse a integrar, a organizar ou a dinamizar os conhecimentos, e tal unidade não passa de resultado de um longo processo de racionalização da própria cultura grega que teve em Homero e Hesíodo a sua origem. Obviamente que essa racionalização não estaria completamente despida como aconteceria posteriormente, mas, de modo quase que imperceptível, subliminar ou ainda inconscientemente, o princípio, a semente da razão já estava ali sendo aos poucos germinada.

Quando os gregos passaram a entremear as lendas com as ocorrências históricas, isso por volta do século XII a.C. quando os povos que vão criar a tradição grega começam a chegar às circunvizinhanças do mar Egeu, percebemos então o surgimento dos cantos e sagas que os aedos – um tipo de poeta ou declamador ambulante no qual teríamos uma aproximação com os cordelistas e repentistas nordestinos – continuamente foram enriquecendo. Geralmente constituídas por uma seqüência de episódios, as epopéias gregas possuíam um fundo histórico comum e alternavam-se apenas através do que os estudiosos chamam de “ciclos”. Esse fundo histórico normalmente era alguma guerra, no caso, as duas guerras de Tebas e a famosa Guerra de Troia. E desses numerosos relatos ou poemas desse período apenas dois se conservaram: a Ilíada e a Odisseia ambos atribuídos ao poeta Homero.

Sobre a vida de Homero muito pouco se sabe, apenas especulações que aqui não há a necessidade de citar, até porque há uma dúvida quanto à sua própria existência. O que se sabe, não com muita certeza, é que muitos aedos teriam posto como uma espécie de pseudônimo o nome de Homero já que eles, naquele período, ainda não teriam um individualismo literário como conhecemos hoje, e assim teriam congregado, em algum momento da pré-história grega, o chamado período dos deuses e heróis, todos os cantos que tratavam sobre as lendas daquele povo.


Compreensão da Influência Grega no Ocidente

Agora trataremos de analisar superficialmente um trecho da Odisseia de Homero a fim de tentar identificar algum elemento que de alguma maneira caracteriza o Ocidente de uma forma distinta do Oriente, nesse sentido, seria então a razão ou a forma como nós, ocidentais, pensamos sobre as coisas que nos dá um caráter diferenciado.

O trecho da obra de Homero escolhido é referente à passagem em que Ulisses ou Odisseu terá que enfrentar pela ilha das sereias, seres místicos capazes de encantar qualquer marinheiro e amaldiçoá-lo com o naufrágio e assim à morte ao obrigá-lo a ouvir seus cânticos sedutores. Ulisses, portador da astúcia , de acordo com os filósofos frankfurtianos Adorno e Horkheimer, acataria a sugestão de prender-se ao mastro da nau enquanto que seus companheiros tapariam os ouvidos com cera a fim de não escutar o canto maldito, embora belíssimo. Odisseu, então, seria o único que guardaria na lembrança o som dos belos cânticos das sereias. O trecho a seguir é contado de forma textual, uma maneira bem didática que o tradutor da obra encontrou para tornar facilitada a compreensão aos leitores um tanto inexperientes, lembrando que a versão original é narrada em versos tal qual um poema épico.

“[...] Com o coração angustiado, disse então a meus companheiros: ‘Amigos, os oráculos, que me foram revelados por Circe, ilustre entre as deusas, não devem ser conhecidos apenas por um ou dois de nós; vou, pois, comunicá-los a todos para que saibais o que nos pode perder, e o que nos pode preservar da Quere fatal. Ordena-nos ela que, antes de mais nada, evitemos as enfeitiçadoras Sereias, sua voz divinal e seu prado florido; aconselha que só eu as ouça. Mas atai-me com laços bem apertados, de sorte que permaneça imóvel, de pé, junto ao mastro, ao qual deverei estar preso por cordas. Se vos pedir e ordenar que me desligueis, apertai-me com maior número de laços.’ [...]” 


O que está presente de maneira objetiva nesta passagem, de acordo com a compreensão dos filósofos frankfurtianos, é que a razão, representada pela astúcia de Ulisses, já estava de algum modo presente na mitologia grega, algo que não se observa na mitologia Oriental. Assim sendo, a razão conseguiu encontrar todos os seus elementos fundadores no mito grego e que com o passar das épocas vem se desenvolvendo de um modo ímpar se comparado ao Oriente. Há nesta passagem uma presença marcante de algo que vai pôr alguma influência sobre a nossa forma de pensar representada nas artes, na filosofia e principalmente na ciência.

Observemos esta afirmação dos citados filósofos alemães da Escola de Frankfurt a respeito do envolvimento da astúcia com a razão a fim de potencializar a característica marcante do Ocidente:

“[...] A astúcia, porém, é o desafio que se tornou racional. Ulisses não tenta tomar um caminho diverso do que passa pela ilha das Sereias. Tampouco tenta, por exemplo, alardear a superioridade de seu saber e escutar livremente as sedutoras, na presunção de que sua liberdade constitua proteção suficiente. Ele se apequena, o navio toma sua rota predeterminada e fatal, e ele se dá conta de que continua como ouvinte entregue à natureza, por mais que se distancie conscientemente dela. Ele cumpre o contrato de sua servidão e se debate amarrado ao mastro para se precipitar nos braços das corruptoras. [...] ”

A razão, nesse sentido, desmistifica, organiza ou, ainda, racionaliza. Foi isto que Ulisses realizou quando premeditou um plano bastante meticuloso para seguir seu caminho: ele fugiu do mito e utilizou um pensamento, uma astúcia para livrar-se ou até usufruir algo no qual muitos, em nome de um conhecimento, de uma “curiosidade” – outro princípio racional também oriundo entre os gregos –, perderam a própria vida.

Esses filósofos dão uma conotação um tanto negativa a respeito da razão no Ocidente tendo em vista sua vertente um tanto “romântica” de retorno à natureza e concebendo a razão como algo não-natural. Todavia, e eles assumem tal postura, até porque reconhecem a contribuição da teoria da racionalização do mundo ocidental apresentada anteriormente pelo sociólogo também alemão Max Weber, a razão, com os gregos, passa a ser o principal estigma de uma civilização. O processo de racionalização ou de desmistificação ainda constante no mundo Ocidental teve seu início com Ulisses quando viu na utilidade da sua astúcia – entenda-se, quando ele fez uso de sua razão, de sua capacidade de refletir ou de ordenar – algo de fundamental para dominar o mundo da vida como a própria natureza.

Em uma era remota, o mito satisfazia muito bem as inquietações manifestadas entre os seres humanos, apesar disso, bastou um entre todos se sentir insatisfeito e criar outra maneira de explicar a realidade e as coisas. Essa outra maneira era a tentativa de ordenação do universo, do mundo ou da realidade através da organização legada a nós por Homero e Hesíodo, principais fontes gregas nas quais encontramos um forte auxílio para a compreensão do homem ocidental.

Obviamente que a “descoberta” da razão e a sua utilização espraiada a tudo aquilo que o ser humano concebesse trouxe repercussões inquestionáveis à sua própria vida, tais como as vemos, por exemplo, presentes na arte, na tentativa de encontrar o belo, sendo o belo nada mais do que um exame de racionalizar ou ordenar ou ainda equilibrar as formas aproximando-as o máximo possível da ideia de perfeição – claro que atualmente a pós-modernidade questiona e cria uma ruptura radical com esse conceito “obsoleto” sobre a arte e a sua busca pela perfeição das formas. Vemos ou sentimos ainda a presença de algum traço, por menor que seja, da presença grega da razão na literatura – naturalmente referindo-se aqui aos autores pós-modernos, mas que sempre, de algum modo, têm na escrita grega um resquício em suas criações ou ainda alguma referência. Vemos mais do que nunca a presença dessa razão grega na filosofia, na qual, aliás, a vemos de um modo mais evidente tal presença rondando com suas questões centrais no pensamento da contemporaneidade. E, claro, na ciência, que se fez portadora e defensora oficial da razão ocidental.


Referência bibliográfica:
PEIXOTO, Paulo M. “Mitologia Grega”. Editora Germape, São Paulo – 2003.

ADORNO, Theodor W. / HORKHEIMER, Max. “Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos”. Trad.: Guido A. de Almeida. Jorge Zahar Ed. – Rio de Janeiro, 1985, (p. 53, Excurso I: Ulisses ou Mito e Esclarecimento).

HOMERO. “Odisseia”. Trad.: Antonio P. de Carvalho. Ed. Nova Cultural – São Paulo, 2003.

OLIVEIRA, Clenir B. “Ilíada e Odisseia: Além do Tempo e do Espaço”. Discutindo Literatura, Ano I, nº 3, São Paulo. Editora Escala Educativa.

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