terça-feira, 1 de março de 2022

SOBRE A RELAÇÃO ENTRE IDEOLOGIA E LINGUAGEM


https://novaescola.org.br/conteudo/1621/mikhail-bakhtin-o-filosofo-do-dialogo

Ao me deparar com uma situação relativamente corriqueira em meu ambiente de trabalho, um aluno proferindo uma frase de maneira “errada” e o professor de prontidão corrigindo essa sua fala, surgiu uma reflexão: “afinal, o objetivo da expressão da linguagem não seria a comunicação? Se afirmativo, existe algum parâmetro efetivamente definitivo que possa nortear o falar ‘certo’, já que a língua ou a linguagem alteram-se com o tempo?”. Diante dessas e outras questões que foram surgindo por conseguinte além de uma contribuição de um professor orientador na indicação de um pensador que pudesse contribuir para tentar, ao menos, compreender o porquê de situações como essas acontecerem, eis que surge a figura do pensador russo Mikhail Bakhtin, crítico literário e filósofo, nascido no final do século XIX e falecido em meados do século posterior, preocupado em demonstrar, dentre outras ideias, o quão impregnada de ideologia se mostra a nossa linguagem.

Naturalmente que ao falarmos de ideologia não podemos deixar de citar a figura de Karl Marx. Não que ele tenha inventado esse termo, mas é o filósofo que servirá de referência para a construção da noção de ideologia apresentada por Bakhtin. Certo também que Marx preconizou uma concepção com certo teor negativo à ideologia tomando-a, fundamentalmente, como encobrimento ou ocultação da realidade. A ideologia serviria como uma espécie de mecanismo de controle que busca esconder a realidade de desigualdade colocada pela classe que controla a sociedade, a saber, a classe burguesa. Nesse sentido, Marx já havia pelo menos apontado que na linguagem, além de outros aspectos sociais, também se manifestam esses elementos ideológicos que servem aos interesses da classe mais abastada e assim corroboram na manutenção do controle dessa classe sobre uma outra.

Marx não aprofundou essa relação entre linguagem e ideologia, o que ficou a cargo de Bakhtin e de seu Círculo. Fruto de vários encontros e discussões com outros pensadores também da mesma nacionalidade, como Volóchinov, essa relação entre ideologia e linguagem foi aprofundada, mas não esgotada, diga-se de passagem, como os próprios pensadores russos atestarão em escritos posteriores. E sobre a ideologia apresentada por Marx e Engels, Bakhtin e seu Círculo não a tomarão por completo, concordando, assim, em termos com o conceito apresentado pelos autores de A ideologia alemã. Terão suas ressalvas sobre essa amplitude que inicialmente foi posta pelos pensadores alemães, muito embora Bakhtin bem como seu Círculo não se assumissem marxistas propriamente ditos, justamente para tentar fugir de ortodoxias ou de discursos “monologizantes”, como o próprio Bakhtin irá assumir quando se debruçou sobre a temática da linguagem e da sua concepção de ideologia defendendo o que ele também denominou de “plurivocidade”, um tipo de pluralismo presente no ato linguístico, resumidamente falando, mas que não pretendemos aprofundar aqui.

Bakhtin, não obstante, percebeu um desdobramento da ideologia mais complexo quando envolvida com a linguagem. Aliás, será Volóchinov quem o auxiliará concluindo que não se pode falar de linguagem sem falar de ideologia simultaneamente. É a linguagem determinada, inclusive, pela ideologia. Por isso Bakhtin e seu Círculo conceberem que tudo aquilo que se mostra ideológico é porque na realidade traz dentro de si um significado, mas mantém uma relação com algo fora de si mesmo, ou seja, resumidamente, "tudo que é ideológico é um signo. Sem signo não existe ideologia”, como definirá o próprio Bakhtin em sua obra Marxismo e filosofia da linguagem.

Uma frase aparentemente simples, mas ao mesmo tempo complexa expressa por Bakhtin e Volóchinov – salientando que apenas este último juntamente com Bakhtin que tratavam efetivamente da temática em questão – logo nas primeiras páginas de Marxismo e filosofia da linguagem, ao admitir que todo e qualquer signo traz dentro de si algo ideológico, o autor russo e seu colega estariam, de algum modo, pressupondo, no mínimo, o contato entre duas categorias que seriam inseparáveis, isto é, o signo e a ideologia.

Essa afirmação será então suficiente para que se possa concluir a existência de um “mundo dos signos”, portanto de um mundo também ideológico já que ambos, o signo e a ideologia se confundem. Qualquer objeto, qualquer coisa física ou material pode ganhar algum sentido ideológico, pode tornar-se um signo ideológico. E esse signo ideológico estaria em um mundo externo que tem um poder de influência muito grande por sobre o indivíduo humano. Ambos os pensadores russos entenderam que a ideologia é de fato uma categoria que também possui esse caráter de exterioridade, visto que ela circula, que ela acontece e assim passa a ser percebida na e através das interações sociais. Aliás, parece que as interações sociais somente ocorrem em razão da existência tanto dos signos como também da ideologia. A consciência do indivíduo humano passa então a ser formada graças a essas interações que ele inevitavelmente se vê obrigado a sentir, algo inescapável de sua condição. Se se tomar, hipoteticamente, apenas dois indivíduos, um diante do outro, e estes dois forem obrigados a criar alguns símbolos para facilitar sua interação e consequentemente sua sobrevivência, isso não seria possível para a perspectiva bakhtiniana. Muito menos ainda teriam a capacidade de criar um mundo ideológico complexo. É preciso, então, a existência de pelo menos um grupo de seres humanos. É preciso uma organização coletiva e complexa maior que permita o crescimento desse mundo ideológico, desse “mundo sígnico” e assim se crie uma capacidade em oferecer uma espécie de liga, de elo que permita, desse modo, uma convivência desse grupo socialmente organizado, através da criação de regras, de padrões de comportamento ou ainda de leis que os demais pares compreendam e assim internalizem uma necessidade de reconhecimento dessas mesmas leis. Esse reconhecimento se dará inevitavelmente através de uma via ideológica, no caso, de uma via sígnica entre todos os membros que compõem essa mesma comunidade. Por isso que o indivíduo pode ser entendido como fruto do meio em que ele vive.

Para Bakhtin e Volóchinov, Marx e Engels ou os marxistas não conseguiram perceber ou aprofundar essa dimensão da relação da linguagem com a ideologia, a saber, com as superestruturas, relegando à filosofia da linguagem a tarefa de trazer às claras essa ligação, essa relação tocada, mas não aprofundada por Marx e seus seguidores. Será, nesse caso, a palavra que de fato possuirá um papel de extrema relevância porque ela funcionaria como uma espécie de ligação, de correlação entre o âmbito da superestrutura e a base social efetiva. 

Tal constatação implica em assumir que cada contexto histórico, nesse sentido, manifesta sua própria forma discursiva de comunicação ideológica. Essa característica se refrata também nas relações de trabalho bem como em algum tipo de regime sociopolítico, dentre outras relações, em que se percebe como as influências transitam de uma maneira expressiva por entre e nos discursos entre os indivíduos humanos socialmente organizados. Não é gratuito, então, perceber-se que há um reflexo latente da luta de classes nos signos ideológicos que buscam evidenciar os “interesses sociais multidirecionados”.

Ao se concluir que a linguagem é fruto das estruturas sociais, implica também em afirmar que ela, a linguagem, traz dentro de si valores exclusivamente humanos, sobretudo valores efetivamente sociais. E esses mesmos valores possuem como objetivo maior reforçar ou simplesmente refletir os conflitos de classe presentes em toda sociedade que almeja legitimar o controle de uma classe sobre a outra. Talvez pior, pois tal diferenciação imposta pela classe dominante, aspira ainda em desprestigiar, em retirar o valor humano daqueles que detém uma forma de expressar-se tida como inferior por não respeitar as normas daquilo que foi estabelecido como “certo” ou “errado” por quem controla os meios de produção e consequentemente as ideologias vigentes nos meios sociais que adotam o conflito de classes como “natural” às sociedades humanas.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

O mito da modernidade ou uma reflexão decolonial a partir de Enrique Dussel

 

https://globaleduca.hypotheses.org/med-the-museum-global-education-and-cultural-diversity/autonomy-pedagogy-educators-gallery/decolonial-pedagogy/enrique-dussel-a-filosofia-da-libertacao

Um professor de história, na educação básica, em uma de suas aulas sobre a história do Brasil, explica aos alunos sobre a chegada dos europeus em terras tupiniquins. Empolgado, o professor comenta que o Brasil de fato começara a surgir a partir da chegada desses nobres e corajosos desbravadores dos mares que enfrentaram agruras mil para mostrar aos seus pares seu poder, sua força para descobrir e impor-se sobre novos lugares. A cultura deste país colonizador da, pelo menos à época, grande monarquia portuguesa começara a impor-se também por aqui e assim evidenciar o grande desenvolvimento naval dos lusitanos que, graças às portentosas caravelas, conseguiram singrar os mares bravios levando sua “boa nova”, sua “salvação” aos gentios, demonstrando o quão civilizados eles efetivamente o eram e o quanto esses povos ditos selvagens careciam urgentemente de uma nova mensagem para serem resgatados do seu estado de incivilizados, atrasados, empobrecidos espiritualmente, ou seja, tudo aquilo que um bom europeu, um bom português, não era e nem deveria pretender ser.

Claro que essa sagração náutica dos nossos “irmãos” lusitanos somente acontecera por conta dos avanços que a modernidade europeia pôde proporcionar. Sobretudo os avanços tecnológicos – como a própria caravela, o astrolábio, dentre outros tantos instrumentos ou simples objetos. Descartes, Galileu, Bacon, Locke dentre outros grandes pensadores que, além de filósofos, eram também cientistas, puderam atestar como a Europa nesse contexto pós Idade Média houvera se desenvolvido e assim conseguido transformar drasticamente aquilo que no contexto anterior a religião cristã resistia em aceitar criando incontáveis obstáculos de ordem religiosa ou pela simples autoridade também religiosa. O desenvolvimento da ciência, a revolução copernicana, a necessidade de mudança do método científico eram a prova do avanço não somente tecnológico, mas também cultural ou filosófico pelo qual a Europa da modernidade fervilhava e há muito ansiava por realizar. Naturalmente que essa transformação não aconteceu do dia para noite. Foi um processo gestado já nos anos findos da Escolástica que culminaria com a filosofia cartesiana sobre o conhecimento ou o “autoconhecimento” – o pensamento puro –, inclusive proferido por toda Europa – e refratando-se em suas colônias, como as Américas, mesmo que tardiamente – pelo filósofo alemão Friedrich Hegel que fizera questão de enaltecer tal feito.

Hegel, nesse sentido, será um desses propagadores – talvez o mais relevante desse grupo – de que a filosofia europeia é sim o berço de uma forma de conhecimento completamente pleno, muito desenvolvido, se comparado a outras formas de pensamento daquele contexto e de contextos anteriores. Descartes teria conseguido a “proeza” de perceber o conhecimento, ou melhor, o pensamento tomado como autoconsciência de si, a expressão do “pensamento absoluto”, como enfatizou o pensador alemão Friedrich Hegel. E eis aqui o nó górdio pelo qual o filósofo Enrique Dussel se valerá para fundamentar sua reflexão e sua consequente contestação dessa ideia, no seu entender, “intra” europeia, eurocêntrica, autocentrada, ideológica e que admite uma origem única e exclusiva no norte europeu e que nos foi imposta desde o século XVIII até a atualidade. Isto é, Dussel procura desmistificar o conceito emancipador de Modernidade que Hegel impôs, sobretudo à filosofia compartilhada pelo resto do mundo.

Dussel, renomado crítico do pensamento eurocêntrico, nasce argentino, em 1934, mas, em razão da ditadura de seu país e de um atentado que sofrera em 1973, se viu obrigado a mudar-se para o México de onde pôde desenvolver uma vasta reflexão sobra a chamada “filosofia da libertação”, uma espécie de conscientização da América Latina e da sua condição de expropriada pelos europeus. Sua análise, nesse sentido, parte de uma compreensão de pluralidade ou de diversidade calcada no reconhecimento de que cada grupo social, de que cada sociedade possui uma identidade única que lhe é própria e, a partir disso, propõe uma completa renovação das ciências sociais que admitam a perspectiva daqueles que Hegel e boa parte da tradição europeia tratou como "inferior", "incivilizado", "menor" ou simplesmente merecedor de uma profunda transformação a partir de um pólo de referência que deve ser posto na Europa. Ou seja, Dussel sugere "simplesmente" que se observe o outro, o diferente, aquilo que o homem moderno europeu, principalmente, mostrou-se completamente incapaz de admitir e assim de reconhecer como um igual.

Por conta disso é que Dussel desenvolve sua sua crítica à concepção moderna de conhecimento, à eurocentrização do saber que foi propagada aos lugares fora da própria Europa, especialmente as Américas. O autor argentino sugere uma refutação ante a origem europeia da modernidade que se deveu a outras culturas que não eram tidas como expressivas e que, sob um certo aspecto, circundavam o espaço europeu, como o mundo muçulmano, que desde o século VII já mantinha os elementos cruciais para uma ideia desenvolvida de modernidade e que, principalmente, mantinha também fortes laços com as culturas ditas periféricas com a África e a Ásia, pelo menos até o ano de 1492, o ano do “encobrimento da América”, título de uma obra sua que retrata muito bem esse aspecto de marginalização dos povos indígenas dentre outras vítimas da colonização europeia.

Ao investigar as origens do eurocentrismo de forma detalhada, é na obra hegeliana que Dussel percebe especialmente uma caracterização bastante evidente além, naturalmente, de sintomática. Não que Hegel tenha sido o inventor do eurocentrismo, mas que talvez fosse uma grande referência para os pensadores que defendem esse tipo de pensamento e que demonstrou de uma forma tão emblemática que o próprio Dussel não consegue deixar de perceber os incontáveis e constantes equívocos históricos realizados pelo renomado pensador alemão quando, dentre esses e muitos outros equívocos, excluía-se as muitas culturas que não tiveram um mínimo de aproximação com a cultura europeia até culminar no “autêntico surgimento” da modernidade na figura do pensador francês Renè Descartes. Sobre isso, Dussel é categórico: Descartes não “inventou” a modernidade coisa alguma, dado ao fato de que seus “costumes metodológicos” – inteiramente subjetivos – impostos e ensinados desde muito cedo nas escolas de ordem religiosa católica, como a qual ele mesmo houvera estudado, em La Flèche. Descartes tão somente teve contato com o cogito graças a uma metodologia, uma prática de estudos tão fortemente ensinada que poderia se dizer que se antecipou ao método de aprendizagem similar ao método do calvinismo descrito em Max Weber para fomentar o “espírito do capitalismo”.

Há nos estudos cartesianos fortes indícios da presença filosófica dos jesuítas, tal qual o reconhecimento da matemática na construção de uma perspectiva de mundo que inclusive já havia sido tratada com Anselmo na Disputatio 28, dentre outros momentos, e que era extremamente comum naquele contexto discussões que envolvessem sobre esse tema nos colégios jesuítas. Com isso, Dussel chama a atenção ao fato de que, antes de Descartes e do “seu método”, já existiam essas discussões que posteriormente caracterizariam a Modernidade, e, o mais interessante, esses ensinamentos eram realizados por filósofos ibero-americanos, de uma geração anterior nos próprios colégios jesuítas.

O mito da origem da modernidade defendida com plenas forças pelo filósofo alemão na Europa, portanto, não se sustenta. Descartes, o tão propagado originador de uma forma completamente inédita de pensamento, em verdade não passou de um aluno que sofreu uma influência de professores em sua maioria não-europeus, de culturas vistas até então como “menores”, "desprovidas" de uma identidade. Argumentos esses típicos, diga-se de passagem, de uma construção mítica. Isso não quer dizer também que esses pensadores não-europeus tenham sido os responsáveis pela origem dessa ideia de Modernidade única e exclusivamente, mas sim de se perceber que essa ideia em verdade foi fruto de uma série de elementos culturais, filosóficos e até religiosos muitas vezes fragmentários que foram gestados e relacionados durante algum tempo. Mas o fato é: não se pode atribuir a um único lugar e/ou indivíduo essa autoria, sobretudo a uma ideia que busca autenticar uma “supremacia” ou um “pensamento puro”. Existe sim pensamentos muitos e diversos onde haja algum indivíduo humano.

O grande problema apontado por Dussel quanto a essa ideia que tenta justificar e consequentemente celebrar a eurocentrização é justamente a colonização epistêmica que esses defensores de um “pensamento puro europeu” intentam em propagar e assim incutir sobre a cultura de outros países que estão fora ou “à margem” dessa Europa tomada ideologicamente como “centro do mundo”. O que o pensador argentino radicado no México está sugerindo é que, pelo menos, se estabeleça um contato, um reconhecimento ou simplesmente um diálogo que escape ao universo europeu admitindo os muitos outros pontos de referência na construção de pensamento. Por isso sua defesa da filosofia da libertação. Uma filosofia que envolva outras esferas – como a teologia – e que parta da realidade latino-americana buscando esclarecer ou retirar as contaminações europeias ou “europeizantes” que se impõem à nossa história – e isto se configura um pensamento decolonial.

segunda-feira, 22 de março de 2021

Os neo-pensadores whatsappianos

 Mas o que é essa coisa tão alardeada que as pessoas via mídias sociais - ou não! - insistem em defender para si chamada de "senso crítico"? Serão elas "críticas" efetivamente como afirmam? Será que ser "crítico" é simplesmente ser do contra? É sempre estar do lado oposto, negando, assumir um "negacionismo", essa palavra tão em voga hoje em dia? "Poxa, cara, você tem que ter um senso crítico pra entender as coisas!", diz algum sabedor contemporâneo pleno de suas supostas certezas e que assume com todas as forças ser de cunho filosóficas - pobre coitado!

Em primeiro lugar, "senso crítico", para a filosofia, não é simplesmente "ser do contra". Não é simplesmente ser aquele cara chato que nunca concorda com nada, sobretudo entre colegas ou amigos numa simples conversa de mesa de bar... Para a filosofia, "ser crítico" vai muito mais além que essa visão no mínimo simplória, para não dizer míope ou deturpada, daquilo que talvez seja mais caro à própria filosofia. É justamente esse "ser crítico" - essa "criticidade", fazendo um neologismo que todo bom filósofo adora fazer - é o que de fato movimenta a filosofia, é o seu modus operandi, seu motor fundamental, sua espinha dorsal. Mas, reitero, não tem muito a ver com esse sentido propagado aos quatro cantos pelos neo-pensadores de Whatsapp.

A crítica, para a filosofia e em segundo lugar, estaria de algum modo vinculada à uma observação mais acurada da realidade bem como do próprio ser humano. Diz respeito a uma qualidade genuinamente humana, fruto da razão, que permite aos seres humanos "desmontar", fragmentar, analisar por partes essa realidade tocada pelo ser humano ou a si mesmo numa tentativa de enxergar aquilo que a grande maioria das pessoas não consegue realizar - e atentem que esse exercício é deveras complexo, inglório e às vezes confunde mais do que ajuda! 

Essa capacidade de "desmonte", como foi dito, não é um trabalho fácil, ligeiro, feito tal qual uma regurgitada de palavras mal pensadas e muitas vezes distantes de um compromisso com aquilo que efetivamente condiz com uma construção argumentativa bem elaborada e que siga um mínimo de rigor. Essa qualidade crítica, enquanto presente no trato filosófico, exige muitos cuidados necessários para tornar sua veracidade válida - ou pelo menos coerente - e que tenha um poder persuasivo que alcance a razão, ou melhor, o lado racional. E aqui sugiro uma leitura ao comprometido leitor de um pensador alemão contemporâneo ainda vivo, Jurgen Habermas, quando trata seu conceito do - não se assustem! - "agir-racional-com-respeito-a-fins". 

Mas - e aí vem uma provocação -, como tentar argumentar dessa forma, com essa incursão racional, com alguém que não exercita justamente esse lado racional tão essencial para que um diálogo sensato aconteça e permita que seu lado sentimental - ou "não-racional" - o guie? Aí é melhor esquecer tudo isso que foi dito acima e não tentar conversar desse jeito com esse alguém, porque você, muito provavelmente, irá desperdiçar seu tempo. 

Essa "des-razão" ou essa "não-razão" entendo aqui neste post como pertencente ao grupo dos sentimentos, das paixões, dos desejos, isto é, tudo aquilo que a razão não consegue lidar, que não admite, pois ela reconhece suas limitações, ao contrário do seu lado antagônico. Saliento ainda que não entendo esse lado por uma perspectiva hierarquizada afirmando que um lado é superior ao outro. Que a "des-razão" é inferior ou superior à razão. O que afirmo é que, para que um diálogo aconteça sensatamente entre dois seres, é crucial o exercício de um elemento fundamental para que ambos entrem em um acordo: o lado racional de ambos. Até porque o objetivo da comunicação ou ainda da própria linguagem é simplesmente ser compreendida, entendida por aquele que emite tanto aquele que recebe.

Então, e já concluindo, "ser crítico", para a filosofia, não é simplesmente discordar de alguém por discordar. É preciso ter um certo rigor - quiçá metodológico; é preciso certa compreensão mais cautelosa, mais dedicada, conhecer melhor - por isso que ao analisar as partes, depois que se desmonta, fica mais fácil compreender todo o objeto observado e, consequentemente, agora sim, ter uma "visão crítica". É preciso conhecer bem o que se está criticando. E só se consegue realizar tal façanha se seguir esse caminho mínimo, se tiver esses cuidados elementares, caso contrário não passará de uma doxa (opinião), um discurso vazio, sem a devida profundidade, sem um conteúdo rigoroso, sem uma preocupação em ser válido, restrito por uma coerção dada pelo seu defensor, que pode ser por conta de seu status social ou pela sua entonação vigorosa pura e simplesmente, de modo violento, com arrogância e despudor além, consequentemente, de um desrespeito para com a sua própria coletividade.

sábado, 30 de janeiro de 2021

Sobre a origem da infelicidade ou porque Heráclito estava certo


Por mais que se tente, que seja impositivo, coercitivamente pela cultura, talvez, a vida não é tão simples. A realidade não se mostra tão simples. Cabe às ideias tentar realizar tal façanha, tal faina hercúlea. Enxergar a realidade apenas com os olhos, com esse sentido que é justamente aquele que mais nos ilude, é um trabalho perdido, o trabalho de Sísifo. Como uma saúva que, solitariamente, tenta derrubar uma floresta de proporções absurdamente gigantesca. A realidade, a vida, são muito mais complexas do que almejamos. Uma ideia - ou um mero conjunto delas -, por mais que se tente, jamais conseguirá captar a completude daquilo que ela tenta transmitir, captar, entender... Até mesmo essas minhas limitadas palavras não conseguem e jamais conseguirão. Posso apenas apontar um caminho, indicar a ponta de um iceberg descomunalmente submerso. 

Mas não podemos deixar de esquecer que vivemos tentando realizar o irrealizável, compreender o incompreensível! A vida, como bem nos dissera Heráclito, é esse devir constante. Um devir que conseguimos captar apenas em um breve momento mas que, ainda assim, não nos dá o direito, a permissão de compreender o todo. A realidade é fluxo, é movimento, e esse movimento não se deixa mostrar, não se deixa ser entendido, ser tomado por inteiro. Conceitos, definições, identificações de elementos constituintes, não passam de uma tentativa bem aventurada ou bem intencionada - ou não - em um momento específico, mas que esse momento não se repetirá no seguinte, é, portanto, malfadado porque tenta compreender o todo, mas consegue compreender uma parte, e quando compreende uma parte, essa compreensão já está obsoleta. 

É o mistério que o ser humano tenta a todo custo descortiná-lo. Os crentes poderiam até afirmar se tratar de Deus, que, na sua incompreensibilidade inerente não permite ser conhecido por completo - eis o "mistério da fé". A realidade é pueril, é fugaz, fragmentada, que nem a vida humana. 

Ousadamente diria ainda que até a verdade estaria inserida nesse constante devir. Ela também se enquadraria nessa condição. Quantas e quantas verdades que aceitamos, que propagamos e depois as deixamos de lado por outras que porventura irão surgir. Talvez a infelicidade da vida humana esteja justamente em não aceitar essa condição absoluta da mutabilidade das coisas. Os conflitos entre pais e filhos, por exemplo, não passam de verdades defendidas por seres humanos mais velhos diante de seres humanos mais novos, até que esses seres humanos mais novos transformem-se nos seus opostos e mantenham o ciclo do conflito com a geração seguinte, seus filhos. 

O conflito, esse sim talvez se configure como a maior prova da mutabilidade das coisas no mundo. O conflito faz parte da condição humana. Seja de caráter interno ou externo. Seja dentro do indivíduo que esteja sofrendo por uma determinada situação - ou várias! - que reforce seu conflito interior, subjetivo, individual; seja fora do indivíduo, em termos de grupo, de classe, "ideológico-partidário". Conflito é sinônimo de mudança, de devir, de fluxo contínuo, de movimento. "Ninguém se banha no mesmo rio duas vezes"... Viver é estar em um rio de águas constantes e turvas. A realidade são essas águas. 

quarta-feira, 24 de junho de 2020

O mito de Sísifo nos dias atuais ou uma reflexão sobre a dissonância cognitiva

https://pt.wikipedia.org/wiki/Yuval_Harari
Pretendo tratar aqui neste breve post a respeito de uma ideia depois de ler um livro bastante conhecido do público leitor e que está de alguma forma compromissado pela busca do conhecimento. O Best seller do historiador Y. N. Harari, Sapiens, uma breve história da humanidade (editora L&PM, ano de 2015 - versão digital). Elogiar essa obra seria um trabalho perdido de minha parte, pois, se o acompanhante deste blogue estiver respeitando uma certa assiduidade, sem sombra de dúvida terá conhecimento desse autor e de suas respectivas obras de sucesso incontestável e que minhas palavras aqui de nada acrescentariam como também tirariam. Resumindo, essa obra dispensa apresentação.

O que me chamou a atenção nesse texto, foi justamente o quanto as ideologias, alicerces de qualquer cultura humana, contagiam nosso modo de lidar com a vida, com os outros, com a natureza, com o universo. As ideias ou as ideologias - e aqui eu tomo ideologia em um sentido vulgar tal qual um conjunto de ideias que constitui o modo de se entender no mundo por parte de qualquer indivíduo - são tão presentes em nossas vidas que chegam ao ponto de nos incapacitar a visão, de nos deixar simplesmente cegos diante da realidade, aliás, realidade essa, diga-se de passagem, que também pode ser questionada, por que, afinal, o que é a realidade se não um punhado de conceitos - ou ideias mesmo! - que podem mudar ao sabor do vento, quer dizer, ao sabor da história ou do próprio sujeito?

O que isto, então, implica em nossa reflexão? Cada ser humano possuiria sua ótica, sua perspectiva a respeito de qualquer coisa, vai depender, claro, do conjunto de ideias que ele iria valer-se para criar essa sua perspectiva de um dado. E talvez isto pudesse explicar a raiz do surgimento do contraditório, melhor, explicaria a origem dos conflitos. 

Harari se vale de um conceito, a "dissonância cognitiva", que, segundo ele, é considerada como uma  "falha" na nossa consciência, na nossa psique, mas que é também algo de uma relevância incomum, dado ao fato de que, caso corrigíssemos essa "falha", não teríamos a capacidade de criar nossas crenças, nossos valores, enfim, não teríamos a capacidade de originar nossas ideias e consequentemente uma ideologia que funcionaria como um elo entre as relações humanas e assim criaria também uma cultura.

Essa "dissonância cognitiva" descrita por Harari chama atenção para uma outra característica efetiva do ser humano, do indivíduo humano: discordar de alguém e/ou até de si mesmo! Ora, as instituições surgem na tentativa de justamente tentar dirimir essa "dissonância" por entendê-la "maléfica", prejudicial ou danosa ao indivíduo humano por acreditar que ela "quebraria" o indivíduo e assim sua necessária ligação com o coletivo, com a sociedade. Tal discordância, é algo diametralmente oposto ao que pretenderiam as instituições, pois estas, de algum modo, almejariam unir os indivíduos em um único corpo social com um objetivo, na visão das instituições, interessante para as duas partes que seria a manutenção da sobrevivência de ambos já que o indivíduo precisa da sociedade e esta precisa do indivíduo para também manter-se coesa, viva, em uma notória relação de via dupla.

Contudo, essa discordância imanente e vital ao indivíduo pode colocar em risco a vida da sociedade, principalmente se não for combatida pela própria sociedade, e daí surgiria a necessidade de algo que possa, pelo menos, diminuir a intensidade de tal "dissonância", talvez até se valendo de uma persuasão sobre este indivíduo humano: as ideologias, que se originam como um poderoso instrumento de combate - e controle! - da individualidade humana - eis porque o ceticismo soaria como algo libertador já que prima justamente pela negação de ideologias.

As ideias não nascem com a gente, como já nos apontara a filosofia moderna do empirismo. As ideias seriam impostas pela sociedade por sobre o indivíduo. Ao longo de nossas vidas iríamos acumulando ideias e mais ideias a fim de que elas pudessem nos auxiliar na busca por uma identidade própria, por uma suposta autonomia, o que se manifestaria, inclusive, um tanto estranho ou paradoxal, já que poderíamos questionar como algo exterior ao indivíduo humano, criado coletivamente, poderia ajudar na construção de um indivíduo na sua busca por autonomia. De novo, a coisa da "via dupla".

Caberia, então, ao indivíduo, na construção da sua individualidade, filtrar o que lhe é ou seria de interesse - ou não. E é justamente aí onde reinaria o perigo de ideologias impostas de fora para dentro do indivíduo quando estas seriam internalizadas e desse modo passando a determinar como pertencentes ou, equivocadamente, como integrantes desse mesmo indivíduo. Ao serem internalizadas, entendendo-a como parte do espírito, como parte de alguém, e daí surgir aquele que inevitavelmente iria discordar dessa ideia internalizada, alheia e importada, soaria, muitas vezes, como uma ofensa, uma agressão de caráter pessoal, individual.

Por isso que criar conflitos, além de ser algo natural ao ser humano, não passa efetivamente de um trabalho desnecessário, infrutífero, e que oferece uma ilusão de vencedor ou de perdedor, mas que na verdade satisfaz apenas nossos instintos mais primitivos na tentativa frustrada de combater algo que inevitavelmente deveria existir. Claro que me direciono àqueles que exclusivamente almejam "vencer" uma discussão política, por exemplo, com seus argumentos supostamente lógicos, "muito bem elaborados", com o desejo latente de subjugar o outro, de vencer o outro - e aqui corre-se o risco de entrar na esfera da violência, seja ela verbal ou não, para subjugar o adversário de suas ideias. Não passaria de um trabalho em vão.
https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Mito_de_S%C3%ADsifo

Seriam as ideias que norteariam nosso modo de enxergar o mundo. Saber da existência delas, pelo menos, tornaria-nos mais conscientes de nós mesmos e assim evitaríamos desgastes que em muitos casos seriam absolutamente desnecessários. Imagine a discussão entre um palmeirense e um corintiano para tentar convencer qual time é o melhor. Ou um bolsonarista contra um lulista. Não adianta argumentar porque cada um irá se dispor de seu leque de ideias escolhidas de acordo com seu perfil intelectual - que também poderia ser fruto de um determinado ambiente ideológico devidamente preparado. Numa palavra, as discussões ou conflitos ideológicos tratam-se de um mito, o mito de Sísifo, que nos obrigaria a observar essa pedra que sobe e desce e que não nos levaria a lugar algum.

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Indivíduo humano: um caçador de si

É fato, a "Idade das Trevas", preconceituosamente atribuído ao período histórico no qual a Igreja havia dominado política e ideologicamente a civilização ocidental, ainda abana suas asas sombrias por sobre nossas cabeças. É fato que a filosofia nos ajudara a sucumbir ante essas hostes assim como, maravilhosamente, ajudou a nos libertar delas. Hoje, mais do que nunca, urge a necessidade de compreender a filosofia como algo distinto à civilização. A máxima de Cioran, mais uma vez, nos impele a tal constatação: "toda filosofia sincera renega os títulos da civilização"! Nessa frase está patente uma filosofia efetiva, plena, autêntica. Uma filosofia que não se deixa levar por rotulações que busquem unicamente esconder algo que a maioria das pessoas, ditas civilizadas, rejeita ou não quer enxergar. A verdade nua e crua amarga o sabor. Dói na alma. E tal qual essa verdade, a filosofia sincera, a morada dessa verdade, não está a serviço de ninguém, aliás, está a serviço dela mesma, de sua busca pela autenticidade, de sua forma simples, pura, única. A civilização não está e nem pretende envolver-se com essa filosofia sincera. Não há necessidade, já que, se isso acontecer, será um suicídio! A civilização não está preocupada com essa filosofia, com a filosofia humana, que busca desvelar justamente o que a civilização pretende obnubilar, sobretudo no próprio indivíduo humano, a vítima de uma "poda" civilizatória, de um cerceamento que objetiva controlar e controlar aquilo que há de mais puro no indivíduo humano: seu eu; aquilo que o torna o "ser-em-si"; numa palavra, seu eu autêntico. Não cabe à civilização buscar ou, ao menos, auxiliar o indivíduo humano nessa sua caminhada de si. Cabe ao ser humano ser um "caçador de si", mas que possa reconhecer que a civilização, nessa sua busca individual, somente o afastará de seu objetivo mais relevante a si mesmo: ser ele próprio. O propósito da civilização é justamente o contrário: impor ao indivíduo humano uma condição de clausura, reforçar em seu âmago um elo com algo alheio a ele próprio, a saber, essa dita civilização que mais parece retirar sua humanidade que fortalece-la. Mais uma vez, à civilização cabe tão somente o árduo trabalho de incutir na consciência humana e assim fazer propagar tal qual um tumor maligno a forçosidade de que o coletivo, o grupo, enfim, a civilização é maior, mais importante que o indivíduo humano. As ideias possuem esse propósito. Sobretudo aquelas lançadas aos quatro cantos de uma sociedade humana qualquer através do que denominam "instituições". Por isso reflexões de um Nietzsche - "sê tu mesmo!" - soar como ofensa aos ouvidos dos responsáveis pela manipulação e controle das sociedades humanas e que se autoproclamam defensores dessa dita civilização humana. Naturalmente que alguns poucos indivíduos humanos conseguem, a duras penas, tal façanha, porém é um trabalho historicamente hercúleo, que exige sacrifícios talvez impensáveis, sacrifícios esses que são, inclusive, originados pela própria civilização, afinal, não custa relembrar, o propósito maior dessa coisa que insistimos em denominar de civilização é justamente dirimir a menor possibilidade de o indivíduo humano ser simplesmente aquilo que ele é em sua pureza ou que ele pretende sinceramente ser. Esse papel cabe à filosofia sincera, e por isso ela sofrer tanta rejeição desde os gregos até os dias atuais, principalmente por aqueles que manipulam as sociedades. Essa dita civilização, além de impor seus obstáculos, suas armadilhas para que o indivíduo humano iluda-se, confunda-se diante de sua busca pela sua autenticidade, cria ideias como vocação, como profissão, alegando que tais alcunhas refiram-se ao sujeito efetivamente, ao próprio indivíduo humano. Perceba, por exemplo, por que será que todo e qualquer indivíduo que apareça naquela caixinha mágica a que chamamos carinhosamente de televisão há, logo abaixo de seu nome, sua profissão? Muitas vezes as profissões não dizem respeito ao indivíduo humano, mas sim a uma ordem econômica que obriga seus contemporâneos a aceitar tal imposição. Pergunta: e se o indivíduo humano simplesmente não aceitar o leque de opções que a civilização dita moderna rotula como profissão? O que se faz a um indivíduo humano que não descobriu - e talvez nem queira! - ser entendido ou fazer parte desse meio social, civilizatório que é a profissão? Se ele pretender, simplesmente, existir?

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Da necessidade de sermos falsos

Conviver em grupo sempre manifesta uma série de inquietudes além de dificuldades. A convivência humana, sem sombra de dúvida, traduz essas características de forma colossal. Mesmo que a literatura, sobretudo no âmbito das ciências sociais, inclusive a filosofia, sugira que conviver com outras pessoas seja algo necessário. Contudo, há algumas pessoas que discordam dessa declarada "necessidade". Mas essa atitude de discordância enfatizaria nas entrelinhas uma necessidade? Já que, para que se chegue a essa ideia de negação, é preciso construir um processo longo da intelectualidade, do conhecimento, para se chegar a tal conclusão?

Na filosofia temos a epistemologia, área voltada para a reflexão do conhecimento, que indica, na figura de John Locke, filósofo britânico, dentre outros pensadores, como nosso conhecimento evoluiu. Nossa inteligência, devido ao processo de acúmulo de experiências que vamos tendo ao longo de nossa vida, vai agregando, vai construindo ao longo do tempo as percepções acerca da realidade e consequentemente de si mesmo. Ou seja, a experiência sensível constrói nosso conhecimento, nossa percepção da realidade, oferece as condições pelas quais criamos a compreensão da realidade. Realizando um esforço filosofante, pode-se concluir que a convivência com outros indivíduos em sociedade também preenche um grau de aquisição de experiência ou de conhecimento social, permitindo assim que o indivíduo saiba conviver com seus pares, eis o ponto de partida dessa nossa pequena reflexão.

Exemplo disso são as normas que somos obrigados a aceitar e a internalizá-las para então aprender a conviver em sociedade: quando uma criança é tomada nas mãos pelos seus pais para atravessar uma rua e estes a ensina que ela deve sempre olhar os dois lados para observar a chegada de algum automóvel ou não indica essa necessidade de aquisição de experiências (sociais e sensoriais) juntamente com as normas. As experiências vêm juntamente com as normas. Esse processo de socialização vai acontecendo paulatinamente, ao longo da vida, e ainda por cima vão se agregando novas experiências sociais ou normas - morais ou não - que vão moldando o indivíduo à sociedade indicando-lhe a forma de ele viver com seus pares sem se sentir um estranho no ninho.

Temos essa necessidade internalizada, afinal, sentimo-nos mais seguros na convivência com os outros - ainda que não gostemos desses "outros". E, ainda mesmo que, porventura, num esforço imaginativo, ele, um indivíduo, não queira integrar-se à sociedade, de algum modo ele terá que inicialmente ter um contato com as normas (sociais) vigentes, experienciá-las, para só então discordar delas e/ou tentar buscar novas ou simplesmente viver como ermitão, isolado de tudo e de todos, mas, insisto, ainda lhe caberia a forçosidade de admitir certas regras inicialmente para só então, posteriormente, rejeitá-las.

Todavia, como fora sugerido inicialmente nesse post, sabemos todos que viver em grupo é uma das tarefas talvez mais hercúleas que somos obrigados a realizar para conviver em sociedade, para ser aceito no grupo social. Quantas e quantas vezes somos forçados a participar de uma reunião em família, por exemplo, na qual não nos sentimos muito à vontade para falarmos aquilo que efetivamente queremos sobre alguém do grupo consanguíneo e, por uma etiqueta talvez "inconsciente", achamos muito mais apropriado falar o que pensamos sobre alguém quando este alguém não está presente, ou seja, "falar pelas costas". Todos sabemos que esse tipo de comportamento no mínimo se manifesta como uma "falsidade", como sintetiza o senso comum, mas será que todos também estariam efetivamente preparados para ouvir/falar "verdades" sobre alguém na presença do ouvinte ou do falante?

Nesse caso fica evidente a eficácia de um processo de socialização no qual nos demonstra como devemos nos comportar com alguém quando não gostamos daquela pessoa - "falar pelas costas" - para que não soframos uma punição e o grupo da família não tenha uma má impressão de quem falou umas "verdades" sobre fulano. Óbvio também que temos o oposto sobre essa mesma situação quando algumas pessoas, talvez por um temperamento diferenciado ou ainda por um traço de personalidade distinto da maioria do grupo, simplesmente ache ser muito mais saudável para este mesmo grupo falar essas ditas verdades que devem ser expressas sem pesar o impacto, as consequências de suas declarações que podem e irão certamente levá-lo a algum tipo de punição, como denominá-lo de "porra-louca", no mínimo, dentre outras denominações negativas.

É provável ainda que, mesmo que ele não se arrependa de suas revelações desagradáveis, o grupo social crie uma espécie de redoma por sobre ele ou simplesmente isole-o da participação ou do reconhecimento do grupo, deixando-o sem uma "recompensa social" pelo seu "mau comportamento", e assim, aquele que todos sabem falar "verdades", ser extremamente sincero, fique subjugado ou condenado a um tipo de ostracismo.

Uma reunião em família, ainda seguindo o exemplo acima, tem o poder de reunir muitas diferenças ideológicas ou de pensamento - imagine em uma sociedade! Qualquer indivíduo que queira integrar-se ao grupo, sobretudo se for consanguíneo, deverá valer-se de certas condutas, aceitar certas normas ou padrões. Mas ainda existe aquele indivíduo que não quer demonstrar a menor intenção em integrar-se. Um indivíduo que se vê excluído, por opção, por não ver ou não aceitar as regras e condutas que subsistem nesse grupo consanguíneo. E agora? O que fazer? É certo que o conflito se tornará, nessa condição, visível. Não obstante, esse conflito é parte significativa da vida em sociedade. Arriscaria ainda em afirmar, conforme uma leitura sociológica, que esse conflito é algo natural, inerente da condição humana, da vida em grupo, seja na família, na religião, na escola, enfim, em qualquer lugar de convivência humana em que haja a menor interação. Viver em grupo pressupõe abrir mão de certos comportamentos, atitudes, até de pensamentos, dentre outras coisas mais. Mas o grande segredo dessa vida social, é saber utilizar-se de um reconhecimento do seu papel social - e de suas consequências - assim como reforçar sua individualidade. Parece de fato um contrassenso, mas a condição humana é recheada disso. E não nos iludamos em acreditar que essa condição seja algo tão simples como uma ciência exata, por mais que tentemos realizar tal façanha. 

SOBRE A RELAÇÃO ENTRE IDEOLOGIA E LINGUAGEM

https://novaescola.org.br/conteudo/1621/mikhail-bakhtin-o-filosofo-do-dialogo Ao me deparar com uma situação relativamente corriqueira em me...