O ser humano, sem dúvida, é um dos bichos mais interessantes que existe na face da Terra. É o mais complexo bem como o mais convencido de suas capacidades extraordinárias diante do restante dos animais. Contudo, pelo mesmo fato de ele, o ser humano, ser o mais interessante, jamais afirme que conhece uma pessoa por completo, porque a gente pode se decepcionar facilmente embora isto não seja regra geral, mas que serve como alerta. Talvez culpa dessa coisa chamada razão que é inerente a todos nós e que justamente nos torna os menos confiáveis e os mais interessantes de todos os animais.
Pude constatar tal afirmação ao ouvir sem querer uma conversa entre dois indivíduos sobre trabalho. Os dois indivíduos nunca passaram por um curso de nível superior, mal concluíram o ensino médio e se viram obrigados a ingressar na vida em busca de trabalho, "bicos" na realidade, para complementar suas rendas parcas e tentar sustentar a família. Numa outra ocasião pude, inclusive, perceber até da dificuldade de ambos em redigir um simples texto contendo umas cinco ou seis linhas. Em suma: eram o que hoje denominam de analfabetos informais. Mas o teor da conversa que tiveram vai contradizer todos os preconceitos que muitas vezes observamos em indivíduos dessa espécie. Vou tentar transcrever o teor da conversa deles:
(...)
- Você deveria ter pedido mais!
- Tás doido! Aí é que ele não ía pagar mesmo!
- Negoção... Trabalhei a mesma coisa que você e só ganhei 20 reais...
- E eu 80... Num tá certo não?!
- Sim, mas eu trabalhei a mesma coisa que você. Entrei e saí no mesmo horário que você, pintei a mesma coisa que você e só ganhei isso? Você devia, pelo menos, ter pedido uns 150 e a gente rachava no meio...
- Mas o material é meu! O pincel, o balde, a brocha, a escada, a espátula... Todo o material é meu. É por isso que eu ganho mais que você. A tinta foi dele, aí ele me pediu o desconto, que era 120, e eu baixei pra 100 reais...
- Sim, meu amigo, mas eu trabalhei a mesma coisa que você... Fiquei embaixo de sol do mesmo jeito que você, suei a mesma coisa que você e você ganha mais só porque tem o material? Se for assim eu também compro meu material...
- Mas sou eu quem arranja os negócios... Você fica em casa de beleza... Eu é que vou em sua casa te chamar pra me ajudar a pintar...
- Sim, mas não mude de assunto não porque você tá errado mesmo.
(...)
Como pudemos notar, parece que aqui existe um prenúncio de consciência em uma mente supostamente pronta para ser lapidada pelos discursos da razão. Ao ouvir essa conversa, fiquei sem acreditar e comecei a me lembrar das aulas de filosofia da faculdade. "Como esses caras conseguiram ter essa noção de exploração sem ter sequer ouvido falar em Marx e sua filosofia?". Parece uma vingança da Ave de Minerva àqueles que tentaram aprisioná-la nos umbrais de alguma universidade renomada. Agora descobri que ela saltita de mente em mente dos seres carentes pelo seu toque, pela sua luz, fossem eles incautos ou não. Talvez ela esteja atrelada àquilo que o brasileiro sabe de cor: a capacidade de sobrevivência.
Na universidade a todo instante somos alimentados com preconceitos sutis de que "quem está aqui é o melhor" ou "vocês foram os escolhidos", de que quem está fora precisa de ajuda, da nossa ajuda, mas muitas vezes saímos de lá tão embebidos por esse tipo de preconceito que sequer notamos que qualquer pessoa pode desenvolver um pensamento racional sem ter que necessariamente passar por uma universidade.
Os cursos de medicina e de direito, pelo menos aqui no meu estado, são os mais famosos por manifestarem essa incrível capacidade preconceituosa em relação não só às pessoas que não fizeram nenhuma faculdade como também aos próprios colegas que possuem cursos distintos. Mas claro que esse preconceito não é uma exclusividade deles, pois, como falei, eles infelizmente é que carregaram esse estigma que parece perpetuar-se até hoje.
O fato é que esses dois ditos semi-analfabetos conseguiram sintetizar muito bem o que muito aluno de faculdade que é obrigado a ler Marx jamais conseguiria em três ou quatro anos de curso! Eles conseguiram realizar aquilo que o próprio Marx já sonhara, que é o de que os trabalhadores - os seres humanos - ganhassem consciência da sua condição nessa sociedade que adora legitimar a relação de explorador e explorado tentando transmitir a ideia de que tal relação é "natural", quando na realidade não passa de uma escabrosa convenção humana. Os cidadãos do exemplo mostraram que a consciência não vem acompanhada de anos a fio de estudos em faculdades ou universidades, mas sim pela própria experiência de vida da pessoa. Não foi preciso ler Marx para saber que alguém estava se travestindo de explorador e o outro de explorado. Bastou apenas sua percepção, sua consciência, para identificar aquilo que somente o ser humano é capaz de possuir e assim identificá-lo como tal. O ser humano, portanto, está intrinsecamente envolvido com aquilo que ele tenta renegar: sua razão.
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