quinta-feira, 11 de junho de 2015

A ciência prova a existência de Deus?

Ao final de uma aula de filosofia, sou acometido por três alunos que concluíram a atividade que houvera passado e que me perguntam ávidos e com o semblante incendiado: "professor, o senhor é ateu mesmo?" O tema da aula em questão fora sobre as teorias filosóficas que abordam o tema da verdade nos filósofos pré-socráticos, em especial Heráclito e Parmênides. Introdutoriamente, falara com os alunos que o surgimento dessa nova forma de pensar originada por esses filósofos se deve ao fato de eles deixarem de lado a explicação baseada no mito ou na crença e terem se utilizado única e exclusivamente da razão como instrumento para explicação da realidade - a busca pelo princípio teórico das coisas, a arkhé, em grego. Não sei porque cargas d'água, de repente estávamos falando que a religião está, sob certo aspecto, intrinsecamente envolvida com o mito; diria até que a religião necessita do mito para existir enquanto tal; e comecei a explicitar a mitologia cristã que, embora alguns autores de filosofia possuam um enorme receio em colocar em seus manuais que nossa cultura possui uma relação com essa mitologia, resolvi encarar o desafio de mostrar aos alunos.

Por mais que esboçasse que o mito não poderia ser tratado como algo mentiroso, como uma narrativa simplesmente fantasiosa ou fantástica; por mais que tentasse mostrar a importância que o mito possui ao criar uma identidade para com uma determinada cultura, ainda assim alguns alunos resistiam em aceitar a ideia de que o mito não é uma explicação baseada na razão, mas sim na crença. Percebi que justamente os alunos mais resistentes a essa concepção são justamente os que frequentam igrejas protestantes ou evangélicas quando um deles me atira a seguinte pergunta: "o senhor é católico?" e de imediato, na mesma proporção com que me lançaram a pergunta, respondo que não. Ao término da explanação oral passo uma atividade e, à medida que forem concluindo, estariam liberados para sair, menos esses três que preferiram conversar comigo sobre minha suposta religiosidade.

"Professor, fale sério, o senhor é ateu mesmo?" Na sala de aula, com minha pouca experiência adquirida, resolvi não abordar muito esse tema justamente para evitar possíveis atritos que alguns alunos poderiam suscitar por acreditarem que, pelo fato de eu não possuir religião, pudesse perseguir aquele que se diz muito religioso. E aí, de uns tempos para cá, vinha assumindo uma postura de agnóstico - um "ateu light", e bote aspas nisso! - que acredita em uma força superiora que é indescritível ou incompreensível pela nossa limitada mente. Porém, e reconheço que talvez tenha sido meu erro, resolvo assumir de vez meu ateísmo diante deles: "Sou ateu!". E eis que sou agraciado com uma pérola argumentativa: "Não consigo imaginar como alguém pode viver sem Deus, professor. O senhor possui alguma doença mental?" Se essa aluna não tivesse feito essa pergunta com um leve senso de humor, juro que me sentiria ofendido e aí partiríamos para a seara da justiça. "Não, não, minha linda, simplesmente não consigo acreditar em Deus ou nessa coisa que vocês adoram em suas igrejas..."

"Mas, professor..." um segundo aluno vem ajudar na argumentação da colega e arremata com a segunda pérola argumentativa: "a ciência prova a existência de Deus. Muitos cientistas  já conseguiram isso!" Meu susto é notadamente percebido por outros alunos que observavam na sala aquela situação. "Quem foram esses cientistas? Me diga o nome de pelo menos um deles para que eu possa investigar, porque, até onde eu sei, a ciência não se envolve com assuntos da religião, com o "objeto" da religião, e, mesmo que ela tentasse - como já o fez em outras épocas - ela não poderia oferecer um resultado confiável... A ciência é um conhecimento originado pura e simplesmente da razão humana e não da crença ou da fé. Se assim o fosse deixaria de ser ciência e passaria a ser religião". Eles se calam por um instante até que a terceira que não havia falado ainda lança a terceira perola: "mas, professor, a prova da existência de Deus está nas coisas que ele criou como as plantas, as montanhas, os animais e até mesmo o ser humano..." Pra sacanear respondo: "tem registrado isso que você me falou em cartório, com a assinatura de Deus e firma reconhecida?". Aí vem o outro com outra pérola: "Deus criou todas as coisas boas do mundo, Deus é o bem maior". "Oxente? Mas Deus não teria criado tudo no planeta, aliás, no universo? Como é que ele criou apenas as coisas boas?", "não, professor, Ele criou as coisas boas e Satanás as coisas más". Comecei a rir alto atrapalhando o restante da turma, não pude me conter...

"Vamos lá: então vocês raciocinem comigo por um instante. Deus fez todas as coisas. É o Ser originalmente superior a todos e a tudo, concordam?" Os três se entreolham e balançam a cabeça concordando. "Diria mais: Deus é tão poderoso, mas tão poderoso que teria criado também o próprio Satanás, não é isso?", novamente concordam e um deles reforça meu argumento concluindo que Satanás fora um anjo antes de ser o rei do inferno. "Perfeito. Satanás é uma criação de Deus, concordam?" Concordam com os olhos esbugalhados. "Se Deus criou Satanás, e Satanás é a encarnação do mal em si, então Deus também criou o mal!", pronto, tomaram um susto e começaram a olhar para os lados em busca de uma explicação.
Santo Agostinho Por Simone Martini, atualmente no Museu Fitzwilliam, em Cambridge
"Professor, o senhor tem que conversar com o nosso pastor. Ele vai explicar para o senhor direitinho essas coisas...". Opa! Notei então que minha argumentação surtiu algum efeito. Eles ficam em dúvida. Resolvo ajudá-los: "Se serve de consolo, posso dar a vocês a explicação de um filósofo da Idade Média, chamado santo Agostinho, que solucionou este problema pelo qual vocês estão atravessando agora. Dizia o filósofo africano que o mal em si não existe, portanto, realizando uma elucubração, Satanás não existe. O que existe de fato é um afastamento da criatura em relação ao seu Criador, ou seja, o ser humano se afasta de Deus quando comete atos que são desaprovados por Ele. O pecado não é um mal em si, mas um afastamento do homem para Deus e, quanto mais atos maléficos o ser humano realizar, mais ele se tornará "mau", afastado de Deus. Deus realmente criou tudo e deu ao ser humano o livre-arbítrio, a capacidade de escolher se ele quer se aproximar de Deus ou não - salientando que antes de realizar tal ato, de afastar-se ou de aproximar-se, Deus já está ciente de tudo, por isso sua 'onisciência'".

O rapazinho solta um sorriso meio desconfiado pelo canto da boca e retruca: "viu aí, professor, que o senhor já sabe a resposta? Deus existe sim, ele é a personificação de tudo que é bom". Minha vez de argumentar: "para santo Agostinho, sim, em termos. Deus é o sumo Bem. É a 'essência' de todas as coisas no universo, o Uno, o princípio, mas, lembremos que santo Agostinho não é o único filósofo da tradição. Existiram e ainda existem muitos outros que desacreditam de sua concepção. Se bem que na contemporaneidade, não conheci nenhum filósofo notável que se debruçasse sobre Deus. Até porque acredito que já seja um tema mais que discutido e consequentemente quase suplantado". Uma delas, a mais calada das duas, respira fundo e me diz: "aos sábados pela manhã temos culto às sete e à noite também às sete...". Sorrio pelo canto da boca e eles saem.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

A Palavra do Senhor II

Tenho que tratar desse tema novamente. Faz-se mais do que necessário compartilhar essas experiências. Óbvio que são, em um determinado momento hilárias, mas não deixam de suscitar uma reflexão reincidente.

Lá estava em casa de minha mãe quando surge à porta os tão famigerados "queima-panela", apelido "carinhoso" atribuído aos religiosos da Igreja Testemunha de Jeová bastante comum por essas paragens - o velho preconceito religioso que ainda resiste por essa região. Como de costume em minha família, alguém, para se livrar o mais brevemente possível desses "missionários", sugere que eu vá recebê-los. Confesso que inicialmente não gostava muito, mas com o tempo passei a sentir um pouco de satisfação ao fazer isso, pois, o que mais me fascina nesse tipo de experiência, é ver a cara de espanto desses "discípulos de Jesus" quando falo de coisas que para eles soam como tabu.

A forma de abordagem parece ser sempre a mesma: perguntam logo se a pessoa visitada compreende o porquê das desgraças que acometem o mundo na atualidade - como que se o mundo já teve um tempo duradouro de paz e tranquilidade - e em seguida lhe impõe a pergunta se a pessoa visitada lê a Bíblia. Em um outro momento já vão abrindo a Bíblia e mostrando em que parte deste livro se encontra a "passagem reveladora" que irá demonstrar laconicamente a razão de um mundo estar como está. É aí que eu os surpreendo...

Ao me perguntar, o jovem aparentemente de trinta anos, se eu acreditava nas palavras da Bíblia, ele crente de que a resposta seria sim, digo-lhe que não... Pronto. Desarma-se o rapaz e sua face é de um susto ensurdecedor que o faz, inclusive, refazer a pergunta: "...Você não acredita em Deus?" E de novo lhe respondo com um sorriso sarcástico já esboçado no canto da boca: "Não. Eu não acredito na palavra do Senhor..." Por dentro estou às gargalhadas ao ver os olhos saltitantes do jovem catequizador e espero ansiosamente a pergunta que vem logo em seguida: "Mas... Por quê?" Olhando nos olhos dele, respondo que, para mim, a Bíblia é um livro amaldiçoado pois não trouxe paz para a humanidade, pelo contrário, só desavenças. Respondo que a Palavra de Deus em verdade é a palavra de um padre ou de um pastor que diz estar com A Verdade, mas que na realidade nenhum deles a tem, pois, se assim fosse, não existiriam tantas religiões no mundo que se autoproclamam detentoras dessa suposta verdade. Insisto que A Verdade não existe! É uma mera convenção - como nos diriam os sofistas.

"Mas o senhor já leu a Bíblia?" Respondo que sim, e várias vezes. Li quando fora católico, li quando fora evangélico, espírita, e não encontrei essa verdade da qual me falaram. Na realidade vi apenas religiões almejando mais poder, mais dinheiro, mais riqueza. Embora todos falassem muito em bondade, na prática o que vi fora o contrário: padres perseguidores a um determinado grupo da própria igreja, padres preocupados em aumentar a renda da sua igreja, pastores que espalhavam o terror ou o preconceito às religiões que não aceitassem a Bíblia como livro elementar, pastores mais preocupados em aumentar seus domínios de influência do que necessariamente propagar a dita "Palavra de Deus"...

Em desespero, o jovem retruca: "Mas o senhor há de convir que do jeito que este mundo está , nós todos seremos julgados no dia do Apocalipse!". Eu respondo de imediato: "Oxalá!". Pronto, a pobre coitada que o acompanha dá um passo pra trás crente que estou invocando uma entidade demoníaca! "Se o mundo um dia se acabar como vocês estão dizendo, então, creio, teremos um final feliz! E duvido muito que Satanás vá querer uma porrada de gente lá no inferno e que o céu fique vazio..." Quando termino de dizer isso, os dois agora dão um passo para trás... Agora sim eles pensam que eu sou o próprio Satanás porque me veem sorrindo...

Meio assustados, eis que o jovem mancebo pergunta numa última tentativa ainda desesperadora de compreender aquela situação: "Vejo que o senhor gosta de argumentar, o senhor gosta de ler?" Cruzando os braços e segurando mais o riso, respondo: "Sim, pois sou formado em filosofia." Nesse instante parece que todo o medo se esvaiu, pois ambos me fitaram e a pobre coitada, outrora calada, fala: "Ah, tá explicado..." Deixei de ser o Capeta e virei um maluco, agora. Digo: "gosto muito de ler e foi através da leitura que descobri as verdadeiras verdades por trás das religiões, principalmente as ocidentais... Você já leu algum livro de filosofia?" Com um olhar convencido, infla um pouco o peito e responde: "sim, a Bíblia". Respiro fundo e faço outra pergunta: "você sabe o que é fundamentalismo?", e ele responde ajeitando o chapéu: "sim. São aquelas pessoas que não são cristianizadas". Seguro um sorriso e aguardo eles concluírem o assunto...

"Bom, se o senhor quiser nos conhecer melhor, nós temos cultos aos sábados e aos domingos às sete da manhã e às sete da noite. Vamos deixar um folheto com o senhor no qual o senhor verá o poder da Palavra de Deus"... Agradeço suspirando profundamente e o sarcasmo inicial transforma-se em indignação...

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

O ser humano precisa ser salvo de quê ou de quem?

Hoje senti uma inquietação que jamais havia sentido antes! Uma pergunta veio até meu pensamento que me deixou intrigado, confuso e bem angustiado - mais de uma para a coleção! Vivemos em uma época de crises de valores, de perspectivas, sobretudo política ou ideológica, na qual o ser humano não consegue mais encontrar uma referência sólida, inabalável, que lhe oferte uma segurança necessária para que ele mesmo consiga iniciar a tão laboriosa busca de si mesmo. Nem a religião, a mais antiga das bases referenciais humanas consegue ser tão inabalável. Por isso minha inquietação: será que o ser humano tem "salvação"?

As dúvidas e questionamentos quanto a essa possibilidade de salvação do ser humano tomam meu espírito que não consegue, contudo, sequer criar uma justificativa cabível que me convença da necessidade de se salvar o ser humano de sua atual condição! Certo que este texto pode configurar-se pessimista - que o seja! - mas que não podemos negar essa condição de a humanidade parecer estar sem rumo, isso sim me toma como um fato inegável.

A todo instante somos bombardeados com notícias e mais notícias de corrupção, de desrespeito aos direitos humanos, de violência, de terrorismo, de fundamentalismo, de crises financeiras... Daí me aparece um indivíduo e diz que temos uma solução quanto a esse quadro: "desligue a televisão", ele diz. Piora mais ainda, pois a sensação de alienação ou de não estar nem aí com o mundo em ruínas a nossa volta tende a aumentar um sentimento de estar fazendo a coisa errada também...

Como simplesmente fechar os olhos para nossa realidade, para essa realidade tão obscura e ao mesmo tempo tão cruel? Admito que parece clichê, mas ir para uma igreja e simplesmente orar para que uma entidade metafísica possa solucionar nossos problemas não me parece o mais apropriado. Ir a um cinema e ficar colecionando peças de personagens de filmes acreditando estar vivendo aquela  realidade ficcional com o objetivo simples de consumo também não me parece apropriado. Se fechar no mundinho de partidarismos políticos com visões tacanhas de determinadas ideologias, piorou. Por isso a pergunta: que fazer?

Quando se é jovem parece que o mundo todo está a seus pés. Basta-lhe um punhado de ideiazinhas para lhe dar um chão que o indivíduo se acha pleno. Mas, basta-lhes alguns anos e um certo grau de cultura - de maturidade - para se perceber que esse chão de outrora é movediço. A humanidade, os seres humanos, estou cada vez mais convencido disso, é um caso perdido! O único animal da Terra que tem a capacidade de transformar a natureza e, no entanto, é o que mais a destrói; é o único animal na face da terra que tem a sagacidade de elaborar palavras e daí criar discursos, mas o faz para perseguir, para maltratar ou até destruir argumentativamente seu semelhante acreditando ser o "dono da verdade"; o único animal da face da terra que se acha superior aos demais - inclusive a si mesmo - e por isso se vê no direito "natural" de dominar ou violentar o diferente.

Como, então, diante de uma realidade dessas dizer ou afirmar que a humanidade tem "salvação"? Alguém pode dizer: "mas o ser humano sempre foi assim desde suas origens e o mudo continua aí..." Eis que eu digo: e isso é reposta? Isso é alguma justificativa? Então eu sou de algum modo obrigado a aceitar essa situação e simplesmente "deixar a vida me levar"? Lidar com o ser humano é uma arte! Não que eu esteja desvalorizando a arte, mas faço referência às incontáveis dificuldades que é lidar com pessoas - portanto seres humanos racionais dotados de um polegar - que afirmam que sempre existiu e sempre existirá aquele que vive bem e o que vive mal, ou seja, o explorador e o explorado; que, embora tenham passado por um curso "superior", admitem que a violência entre crianças deva ser incentivada; que a sociedade deva ser comandada por pessoas que desrespeitam os direitos humanos elementares.

Admito que parece um discurso extremamente pessimista, mas o ser humano, em sua condição geral, aliás, como já nos dissera o velho Schopenhauer, está fadado ao sofrimento. Por que então lutar contra isso? Por que então não aceitar tal condição, abraçá-la, senti-la em sua profundidade. Talvez, quem sabe, o ser humano pudesse até entender a efetiva "felicidade".

"Esse é o pior dos mundos possíveis. Com todas as suas variantes e diferenças, com toda a sua multiplicidade, durante o seu desenvolvimento, a realidade íntima do mundo e do homem é sempre a mesma vontade onipotente; a própria história é sempre a repetição do mesmo acontecimento sob aparências diversas: a vontade de viver determinando o sofrimento como condição humana: VIVER É SOFRER..." (A. Schopenhauer).

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

CRÔNICAS DE UMA BARBEARIA II

Dona Aldegunda, seu Paulo e as leis

Dona Aldegunda era uma funcionária pública exemplar. De família tradicional na pequena cidade de Enforcados, sempre esteve de algum modo envolvida com os grandes acontecimentos da pacata cidadezinha. E foi graças a essa convivência com os personagens mais conhecidos de Enforcados que ela conseguiu seu emprego público e, posteriormente, um cargo de chefia no setor onde trabalha a mais ou menos vinte anos. Casada com Paulo, sessenta e poucos anos, homem simples, funcionário municipal aposentado, a mais de trinta anos aceita a personalidade forte de sua esposa e vive à sombra dela. Não é de briga, calmo, parcimonioso, frequentador contumaz da barbearia de seu Oswaldo, senta-se à cadeira de espera e dá um bom dia timidamente a seu Oswaldo e ao cliente que está por terminar de cortar o cabelo.
- Bom dia, seu Paulo!Tudo bem com o senhor? Responde seu Oswaldo.
O homem sentado à cadeira do barbeiro observa pelo reflexo do espelho seu Paulo balbuciar alguma coisa logo após as palavras de seu Oswaldo e, curioso, pergunta-lhe:
- O senhor disse alguma coisa?
O olhar de seu Paulo se espanta, ele observa com maior profundidade para o homem sentado à cadeira do barbeiro e retruca:
- Não, meu amigo, não, não... Só estava pensando cá com meus botões...
Seu Oswaldo nota o clima um tanto tenso após a chegada de seu Paulo. O homem sentado à cadeira é o Firmino, conhecido na cidade por ser marchante, açougueiro e ter uma banca na feira. Meio rude, embrutecido talvez pela ocupação escolhida, carregava logo abaixo do nariz um bigode de destaque que lhe cobria a boca, mas que estava devidamente aparado. Ficou no ar a impressão de que Firmino conhecia alguma coisa de seu Paulo e com isso guardava também algum rancor. O pacato Paulo sentiu o clima esquisito que se iniciou e, como de costume, prefere se afastar de situações desconfortáveis:
- Oswaldo, passarei aqui mais tarde... Vou resolver um negócio e volto já...
- Vá em paz...
Assim que seu Paulo some da barbearia, Firmino fala:
- Isso lá é um homem que se respeite! Um pobre diabo desse que vive às custas daquela desgraçada que ele tá casado...
Seu Oswaldo, um pouco assustado, retruca:
- Oxente, cabra!? Por quê?
- A peçonhenta da esposa dele! Aquela mulé não vale o que o gato enterra! E ele é cúmplice dela por deixar ela fazer as asneiras que faz...
- Vixe... E o que foi que ela fez de tão má assim pro senhor?
- Aquela fia duma égua aprontou uma comigo da peste... Acabou com um dinheirinho que eu recebia pelo governo pra ajudar apenas os puxa-saco dela que ela chama de amigo. Pra mim botou pra lascar, pros amigo ajudou... Só vivia dizendo "vamos respeitar as leis! Temos que respeitar as leis!", pra cima dos que não era amigo dela... Era uma fia duma égua mermo...
Seu Oswaldo, de praxe, tentou ser o mais cuidadoso possível pois sabia sim da fama de dona Aldegunda e preferiu não perguntar mais nada ao Firmino deixando que ele falasse o que quisesse, como ele se calou, o silêncio imperou no ar até que o velho barbeiro interrompeu dizendo que o corte já havia concluído. Firmino paga-lhe o devido valor e sai da barbearia agradecendo. Bastou seu Oswaldo pegar a vassoura para limpar os restos de cabelo aos pés da velha cadeira que aparece à porta seu Paulo.
- Pronto! Resolvi o problema e já posso fazer minha barba agora...
O semblante de seu Paulo já estava mais relaxado. De fato, seu Oswaldo notara que o clima com os dois na barbearia não tinha sido muito bom e percebeu também que Paulo só havia saído para não estar no mesmo lugar que o Firmino. Assim que se senta na velha cadeira do barbeiro, este lhe pergunta:
- Ê, véio Paulo, diga lá as novidades...
Seu Paulo olha pra ele pelo espelho, mas, como também era costume do velho barbeiro, observa apenas os cabelos passando a mão na barba mediana do velho aposentado que permanece em silêncio enquanto seu Oswaldo vai reclinando a cadeira para a posição de barbear e, assim que termina o procedimento, seu Paulo fala:
- O amigo sabe que eu não sou de briga, né Oswaldo, mas esse homem que saiu daqui agora à pouco não gosta muito de mim por causa do que minha esposa fez pra ele...
Fazendo-se de desentendido, seu Oswaldo retruca:
- Oxente, cabra?! E o que foi que sua mulé fez pra esse pobre de Cristo?
- Você sabe que Aldegunda tem um gênio bem forte... Ela só quis aplicar as leis, fazer o que tá escrito nas normas, mas ele não entende isso...
Seu Oswaldo solta um sorriso irônico pelo canto da boca e decide atiçar um pouco a conversa...
- Mas ele disse que pra os amigos dela a lei não se aplicava. Era verdade mermo?
- Claro que não. Minha esposa é muito correta! Ela segue as leis, as leis que ela segue devem ser respeitadas acima de qualquer coisa!
Seu Oswaldo amplia ainda mais o sorriso irônico do canto da boca e apimenta mais ainda a conversa, talvez com o objetivo de arrancar alguma coisa escondida do velho Paulo...
- Mas o senhor há de concordar comigo, seu Paulo, que existem situações em que as leis não podem ser aplicadas como tão nos papéis, né não?!
- Acho que não... O problema do mundo é justamente esse: se todo mundo seguisse o que tá prescrito nas leis, nas leis de Deus e nas leis dos homens, o mundo não taria desse jeito que tá... Todo mundo só ia fazer o que é certo e ninguém errava nada... O mundo seria melhor se todo mundo seguisse as leis, seu Oswaldo, bem melhor, com certeza...
Seu Oswaldo se cala, mas não se convence deixando o sorriso do canto da boca esmorecer paulatinamente...

O objetivo da vida é ser feliz?

  Decerto a experiência humana nos impõe uma ideia de que tanto o prazer como um estado de felicidade associados de algum modo devem ser tom...