Por mais que esboçasse que o mito não poderia ser tratado como algo mentiroso, como uma narrativa simplesmente fantasiosa ou fantástica; por mais que tentasse mostrar a importância que o mito possui ao criar uma identidade para com uma determinada cultura, ainda assim alguns alunos resistiam em aceitar a ideia de que o mito não é uma explicação baseada na razão, mas sim na crença. Percebi que justamente os alunos mais resistentes a essa concepção são justamente os que frequentam igrejas protestantes ou evangélicas quando um deles me atira a seguinte pergunta: "o senhor é católico?" e de imediato, na mesma proporção com que me lançaram a pergunta, respondo que não. Ao término da explanação oral passo uma atividade e, à medida que forem concluindo, estariam liberados para sair, menos esses três que preferiram conversar comigo sobre minha suposta religiosidade.
"Professor, fale sério, o senhor é ateu mesmo?" Na sala de aula, com minha pouca experiência adquirida, resolvi não abordar muito esse tema justamente para evitar possíveis atritos que alguns alunos poderiam suscitar por acreditarem que, pelo fato de eu não possuir religião, pudesse perseguir aquele que se diz muito religioso. E aí, de uns tempos para cá, vinha assumindo uma postura de agnóstico - um "ateu light", e bote aspas nisso! - que acredita em uma força superiora que é indescritível ou incompreensível pela nossa limitada mente. Porém, e reconheço que talvez tenha sido meu erro, resolvo assumir de vez meu ateísmo diante deles: "Sou ateu!". E eis que sou agraciado com uma pérola argumentativa: "Não consigo imaginar como alguém pode viver sem Deus, professor. O senhor possui alguma doença mental?" Se essa aluna não tivesse feito essa pergunta com um leve senso de humor, juro que me sentiria ofendido e aí partiríamos para a seara da justiça. "Não, não, minha linda, simplesmente não consigo acreditar em Deus ou nessa coisa que vocês adoram em suas igrejas..."
"Mas, professor..." um segundo aluno vem ajudar na argumentação da colega e arremata com a segunda pérola argumentativa: "a ciência prova a existência de Deus. Muitos cientistas já conseguiram isso!" Meu susto é notadamente percebido por outros alunos que observavam na sala aquela situação. "Quem foram esses cientistas? Me diga o nome de pelo menos um deles para que eu possa investigar, porque, até onde eu sei, a ciência não se envolve com assuntos da religião, com o "objeto" da religião, e, mesmo que ela tentasse - como já o fez em outras épocas - ela não poderia oferecer um resultado confiável... A ciência é um conhecimento originado pura e simplesmente da razão humana e não da crença ou da fé. Se assim o fosse deixaria de ser ciência e passaria a ser religião". Eles se calam por um instante até que a terceira que não havia falado ainda lança a terceira perola: "mas, professor, a prova da existência de Deus está nas coisas que ele criou como as plantas, as montanhas, os animais e até mesmo o ser humano..." Pra sacanear respondo: "tem registrado isso que você me falou em cartório, com a assinatura de Deus e firma reconhecida?". Aí vem o outro com outra pérola: "Deus criou todas as coisas boas do mundo, Deus é o bem maior". "Oxente? Mas Deus não teria criado tudo no planeta, aliás, no universo? Como é que ele criou apenas as coisas boas?", "não, professor, Ele criou as coisas boas e Satanás as coisas más". Comecei a rir alto atrapalhando o restante da turma, não pude me conter...
"Vamos lá: então vocês raciocinem comigo por um instante. Deus fez todas as coisas. É o Ser originalmente superior a todos e a tudo, concordam?" Os três se entreolham e balançam a cabeça concordando. "Diria mais: Deus é tão poderoso, mas tão poderoso que teria criado também o próprio Satanás, não é isso?", novamente concordam e um deles reforça meu argumento concluindo que Satanás fora um anjo antes de ser o rei do inferno. "Perfeito. Satanás é uma criação de Deus, concordam?" Concordam com os olhos esbugalhados. "Se Deus criou Satanás, e Satanás é a encarnação do mal em si, então Deus também criou o mal!", pronto, tomaram um susto e começaram a olhar para os lados em busca de uma explicação.
Santo Agostinho Por Simone Martini, atualmente no Museu Fitzwilliam, em Cambridge |
O rapazinho solta um sorriso meio desconfiado pelo canto da boca e retruca: "viu aí, professor, que o senhor já sabe a resposta? Deus existe sim, ele é a personificação de tudo que é bom". Minha vez de argumentar: "para santo Agostinho, sim, em termos. Deus é o sumo Bem. É a 'essência' de todas as coisas no universo, o Uno, o princípio, mas, lembremos que santo Agostinho não é o único filósofo da tradição. Existiram e ainda existem muitos outros que desacreditam de sua concepção. Se bem que na contemporaneidade, não conheci nenhum filósofo notável que se debruçasse sobre Deus. Até porque acredito que já seja um tema mais que discutido e consequentemente quase suplantado". Uma delas, a mais calada das duas, respira fundo e me diz: "aos sábados pela manhã temos culto às sete e à noite também às sete...". Sorrio pelo canto da boca e eles saem.