domingo, 7 de abril de 2024

O objetivo da vida é ser feliz?

 

Decerto a experiência humana nos impõe uma ideia de que tanto o prazer como um estado de felicidade associados de algum modo devem ser tomados como nossos guias no mundo humano. Não importa como, mas o prazer que pode induzir a uma felicidade ou a uma sensação plena, movimenta o andar humano, se duvidar, desde quando o ser humano ainda carecia de uma compreensão mais acurada da natureza e de si próprio. 

No alvorecer da humanidade, embora não se pudesse identificar com clareza o que era uma condição efetivamente "humana", nossos antepassados envolviam-se constantemente com essa busca que oscilava entre prazer e ser feliz. E que fique claro que essa busca por prazer e consequentemente por felicidade não estava atrelado única e exclusivamente ao sexo. Por isso, até hoje, faz-se premente ter uma noção clara do que se entende por prazer, se esse bem-estar individual é válido, honesto ou se diz respeito a um mero capricho, algo ilusório, sem efetividade e muito menos duradouro.

Epicuro, filósofo da antiga cidade de Samos, nascido provavelmente em 341 e falecido em 270 a.C., era tido como um dos filósofos mais renomados de sua época chegando ao ponto de ser denominado por muitos como "salvador" será um desses pensadores voltados para refletir sobre a felicidade. Autoproclamado "médico da alma", Epicuro via nessa reflexão sobre a felicidade algo que, inevitavelmente, subsiste através de uma relação intrínseca com o prazer. Porém, não um prazer desmesurado ou simplesmente sem um controle racionalizado ou ainda puramente carnal - aliás, motivo pelo qual fora mal interpretado durante muito tempo. 

Para o pensador de Samos, seria muito mais prudente submeter a nossa busca da felicidade ao julgo da razão. Esta seria, então, uma crucial ferramenta para que a serenidade plena pudesse ser alcançada, salientando ainda que, mesmo com o uso dessa ferramenta a que chamamos de razão, ela não se mostra como uma ferramenta de fácil manuseio. 

Contudo, Epicuro oferece o meio para que possamos enfrentar os obstáculos que atrapalham nossa busca por essa felicidade e que a razão pode de alguma forma nos auxiliar: é o prazer que pode nos permitir alcançar uma vida plenamente feliz. Mas, como assim, "o" prazer? A que de fato ele está se referindo quando, de forma "sucinta", nos diz ser o prazer o principal meio para essa tão almejada felicidade?

É justo que alguém questione se aquilo que fora escrito a tanto tempo atrás efetivamente possa ser válido hoje em dia. Essa resposta exata, sobretudo em terreno movediço como o da filosofia, é algo relativamente inalcançável. No entanto, que fique evidente, neste post estão apenas indícios, pequenas noções que poderiam dar a algum leitor desavisado ou a um simples passante do mundo virtual uma singela amostra do que Epicuro, este pensador emblemático da filosofia antiga, tem a nos oferecer. Feito minha justificativa, vamos ao que interessa.

Epicuro entendia que na filosofia havia uma espécie de espaço propício para a existência de meios eficazes de combate e cura da "saúde espiritual" - por isso a alcunha de "médico da alma" -, especialmente dos gregos que viviam em uma época de grandes atribulações políticas e conflitos bélicos com outras cidades e povos. Mas não pretendo aqui alongar-me nesse debate. O foco aqui é justamente as formas utilizadas pelo pensador de Samos para permitir o acesso à felicidade. 

Inicialmente deve o indivíduo eliminar o que ele denominara de "medos inúteis", que são: o medo da morte, o medo dos deuses e o temor da dor. Todo ser humano parece que, ao menos, um desses três medos vai lhe tomar boa parte de seu espírito ou de sua vida. É-lhe quase uma fatalidade. E satisfeito será aquele ser humano que tiver apenas em algum momento de sua vida o domínio de um desses três medos destacados por ele.  

Identificando quais os medos que imperam em nossa vida, caberá agora partir para uma próxima etapa que é buscar a moderação nas nossas necessidades elementares sempre atentando para que nossa satisfação não possa tornar-se em um vício, já que tal possibilidade é iminente além de perigosa visto que os vícios nos afastam e muito da felicidade, oferecendo desse modo uma ilusão muito poderosa, e que toma o prazer como um fármaco também não menos poderoso. Se nos convencêssemos de que a felicidade está no alcance da serenidade, na tranquilidade de espírito, e que o exercício constante dessa busca pela serenidade fosse tomado como um prazer, estaríamos entrando em uma outra etapa para chegarmos à felicidade verdadeira e não a uma felicidade passageira facilmente confundida com um prazer, como o filósofo assim nos diz em sua Carta a Meneceu.

"Portanto, quando dizemos que o prazer é o bem completo e perfeito, não nos referimos aos prazeres dos dissolutos ou dos crápulas, como acreditam alguns que não conhecem, ou não partilham, ou mal interpretam a nossa doutrina, mas sim a não ter dor no corpo nem inquietação na alma. Posto que não fazem uma vida feliz nem os banquetes e as festas contínuas, nem desfrutar de jovenzinhos e mulheres, nem peixes e tudo quando oferece uma mesa farta, mas o cálculo judicioso que procure as causas de cada ato de escolha ou de recusa, que afaste as falsas opiniões das quais nascem as maiores inquietações de espírito" (In: NICOLA, 2005, p. 109).

Ou, dito de outra forma: para que saibamos qual é o verdadeiro prazer, é preciso identificar aquilo que nos dá paz de espírito, tranquilidade. E isso é possível quando domamos os desejos que imperam o tempo todo em nosso âmago, nos oferecendo caminhos distintos, soluções rápidas, prazerosas momentaneamente, mas que no fundo não nos oferece um prazer duradouro, sincero ou ainda confiável. O cálculo, entenda-se a razão, deve ser utilizado a todo instante, sobretudo quando lidamos com os nossos prazeres, esses prazeres corriqueiros, temporários.

Decerto que os desejos o tempo todo assolam nossa alma, nos desvirtuam a razão, nos afastam da serenidade de espírito, mas, para Epicuro, devemos lutar contra esses desejos, não permitir que eles nos controlem; devemos combatê-los diuturnamente sempre fazendo uso da nossa maior qualidade humana: a razão. Essa nossa resistência já configura como uma espécie de enfretamento e que por si só demonstra a criação de uma resistência e de uma preparação convincente para a felicidade. Nas palavras do "médico da alma":

"Consideramos um grande bem a independência diante dos desejos, não porque é necessário ter somente pouco, mas porque, se não temos muito, sabemos nos contentar com pouco; profundamente convencidos de que goza da abundância com maior doçura quem menos dela necessita, e de que tudo que a natureza requer é facilmente encontrável. Os alimentos frugais produzem um prazer igual ao de uma refeição suntuosa, uma vez que eliminamos a dor na necessidade, e pão e água produzem um prazer mais completo quando consumidos por quem deles precisa. Acostumar-se a alimentos simples e frugais é um bem para a saúde, torna o homem atento às exigências da vida, e se, às vezes, nos acostumamos à vida suntuosa, nos encontramos melhores preparados em relação a ela e destemidos em relação ao destino" (In: NICOLA, 2005, p. 108). 

Nesse sentido, podemos concluir que por prazer autêntico, capaz de oferecer o verdadeiro caminho para a felicidade, Epicuro compreendia ser a tranquilidade de espírito. O indivíduo que atingisse esse objetivo demonstraria um controle, uma preparação muito bem feita para enfrentar as agruras da vida com uma serenidade incomum diante dos seus pares. Ser feliz, portanto, é você ter paz de espírito, conseguir dormir com tranquilidade em seu âmago, ter a convicção de que os problemas existem para serem enfrentados e assim nos tornar pessoas mais resistentes, mais bem preparadas e, sobretudo, que consiga desenvolver uma calma quando se deparar com os infortúnios que fatalmente tendem a nos assolar a existência.

Naturalmente que obra de Epicuro não se restringe a essas meras palavras aqui articuladas. Em seus textos há uma preocupação em destrinchar de forma pormenorizada os meandros de sua reflexão a respeito de como devemos proceder para chegarmos a esse bem tão caro à humanidade que é a felicidade. Realizar o "cálculo do prazer" é apenas um importante passo para se chegar ao que chamava de ataraxia, a "ausência de inquietudes" ou simplesmente a "tranquilidade da alma" que, como vimos, é o que de fato importa para nos tornarmos felizes. 

Sua proposta filosófica que estrutura o que passou a se chamar também de "hedonismo", busca defender que o prazer é sim o fim bem como o princípio de toda vida humana que anseia a plenitude. Mas cabe a cada um de nós, se tomarmos como tarefa diária e constante, saber identificar e consequentemente diferenciar os prazeres efêmeros dos estáveis, aqueles prazeres que podem nos proporcionar alegrias passageiras daqueles que nos oferecem a tranquilidade d'alma, posto que estes últimos se enquadrariam perfeitamente no que o pensador de Samos denominaria de uma sábia vida, reforçando afirmativamente que nosso objetivo da vida é sim sermos felizes. 

Referência: 

NICOLA, Ubaldo. Antologia ilustrada de filosofia: das origens à idade moderna. Tradução de Maria Marguerita de Luca -- São Paulo: Globo, 2005.

As imagens deste post foram criadas por I.A. (CoPilot).

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