sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018
O velho e a morte
Um velho homem acamado em um hospital tem seu silêncio interrompido pela mulher ao seu lado que reza incessantemente preces às vezes inaudíveis para ele. Ela é sua esposa que, com os olhos cheios de lágrimas, palavras trêmulas que saem de seus sofridos lábios, fazem acreditar no fundo de si que tais preces terão algum valor, ou melhor, que essas preces têm algum valor diante de um Ser único que teria criado tudo o mais. O rosto do velho homem está esquálido, inexpressivo, mas, em seu âmago, ele não para de contar os segundos que faltam para a morte, essa sua grande companheira da vida, "que venha e leve-me em seus braços..." A lacrimosa mulher relembra amargurada das vezes que o alertara a tomar o remédio nos horários prescritos pelos médicos; das vezes em que ele se vira privado por ela de tomar aquela cervejinha bem gelada no final da tarde ou a cachacinha antes do almoço; das vezes em que passara algum programa na tevê que destacava a importância dos exercícios físicos, da alimentação balanceada, das práticas de vida saudáveis... "A vida é um inferno!", pensara, pois tudo teria que estar sob o controle dos médicos, dos remédios, das receitas. Tudo que lhe dava vontade era malvisto, era proibido. Seu eu fora sumariamente ignorado. Desmontado ao longo dos anos pelas ditas instituições que se alimentam de sua combalida individualidade. Até que veio o dia fatídico do corpo dizer basta não suportando mais a ausência de si... Mas seu espírito ainda teima em resistir. No fundo, o velho homem sabia que a morte não é algo tão ruim como as pessoas o diziam, como todos da sociedade o diziam. A morte é libertação, fuga de uma vida asfixiante fruto de escolhas que ele pensara serem sensatas em algum dia remoto. O seu corpo fenece. Aliás, desde que nascera ele já notara isso. Iludem-se aqueles que acreditam piamente que “uma vida saudável” lhes garantirá que não irão morrer, ou que, pelo menos, a distanciarão da morte. Ela chegará, mais cedo ou mais tarde. O sofrer humano reside justamente em não aceitar essa única verdade sólida e inabalável: a morte virá dar o seu abraço. Seja rico, pobre, baixo, alto, gordo, magro, saudável ou cancerígeno... Não adianta fugir. Sábios e, portanto, efetivamente felizes são aqueles que reconhecem esse carinho natural que ela vem nos dar ao final de qualquer vida. A mulher chora porque ainda não reconheceu essa verdade, aliás, a única verdade que vale a pena ser difundida. Em seu âmago o velho homem sorri porque finalmente a morte se aproxima e ele pode agradecer com suas últimas energias movimentando seus lábios moribundos um pálido “obrigado”...
quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018
Do fanatismo
Cioran já nos alertara a respeito
da mazela que as ideologias podem trazer ao ser humano. Louvemos Pirro! A busca
pela verdade, essa herança reforçada pela modernidade, ainda manifesta tal
força nos dias atuais que a humanidade acredita ser absolutamente natural estar
enquadrado em alguma corrente, em algum conjunto ou corolário de ideias que de
algum modo serve para que os seres humanos possam enxergar o mundo ou até mesmo
sua própria vida. Propalam aos quatro ventos que sem um conjunto de ideias
salvadoras, nós não seríamos nada. E essa ideia de salvação não está presente
apenas nas igrejas ou nas religiões. Foi-se esse tempo! O fanatismo conseguiu
ganhar mais espaço. Pulou os muros religiosos. Transbordou os pátios ditos
sagrados chegando a vários lugares, como na política - e principalmente a política! Cuidado com aqueles que
bradam suas verdades inquestionáveis! Esses são os mais perigosos! São capazes
de qualquer coisa para reforçar sua necessidade ou sua vontade de poder. Sim.
Eles almejam o controle através de suas ideias que funcionam mais como amarras,
como grilhões que a todo instante impõem aos seres humanos uma condição da
qual, quando estiverem convencidos, dão a garantia de que alcançarão a
felicidade. O fanático está plenamente convencido disso. Ele se mata ou pode até
matar. Ele é violento, ávido por brigar, por entrar em conflito, por tentar
convencer de que ele está com a verdade e os outros não – atente que tal característica
transbordou da religião para outras esferas. Ele, o fanático, não aceita o
discurso contrário. Ele quer porque quer que o outro o aceite, que o entenda,
que se convença de sua ideia absoluta, infalível e inquestionável. É um dogmático com todas as letras! “Saia daqui você que
não ouve! Você está no caminho errado. Que erre sozinho, isolado, porque parece um pobre miserável; quando isolado, não passa de uma sombra borrada de alguém.
Isolado você não é nada nem ninguém! Nós somos porque acreditamos em uma ideia,
defendemos essa ideia. Vocês, os fracos, os que optaram por fugir da
verdade, estão todos fadados ao recanto mais obscuro do inferno – da
sociedade!”. O convencimento transformou-se em moeda de troca. O ser humano de
sucesso é aquele que consegue convencer e manter um sem número de séquitos. A
mídia em geral transformou-se em uma ferramenta poderosíssima que fortalece e
propaga-se de um modo jamais visto, inimaginável em outras épocas. É muito mais
fácil convencer um fanático, diga-se também, um fã, um seguidor... através dela, da mídia. Discursos e mais discursos de que a mídia
contemporânea tem como foco a democratização do conhecimento ou da informação
soam aos ouvidos. E tal ideia não está de todo errada. Contudo, o que está
subentendido nessa “democratização”, em verdade são as ideias que a mídia quer
que se acredite, que se propague, que se fortaleça, que encontre morada. Ideias
que convençam o pobre espectador, ou ouvinte a
continuar o consumo daquela ideia – e que, diga-se de passagem, se transformou
em um produto lucrativo nos dias em que a dita razão venceu. O fanático, e
aqueles correlatos que tentam se aproximar a tal condição, seduzidos pelas
armas contemporâneas de convencimento, se acotovelam para comprar e assim
consumir ao máximo a ideia da moda! Mas essa ideia da moda não vive
solitariamente. Não é um único produto. A variedade delas são incontáveis, ad infinitum! Vários são seus rótulos.
Têm as ideias antiquadas, modernas, cult,
filosóficas, religiosas... a vitrine não consegue comportá-las por completo.
Cuidemo-nos para que nenhuma delas convença-nos a fazer algo, seja errado ou
não...
O mundo é dos mais espertos
Uma garotinha dança ao som de uma música popular do momento aos olhos emocionados, quase lacrimejantes e orgulhosos da mãe que segura ávida seu celular pago com 12 prestações - mesmo atrasadas - sintetiza uma imagem bizarra da dita era do conhecimento. A música que é ouvida induz e reduz o corpo a um mero objeto a fim de demonstrar o controle de sedução ou ainda, na melhor das hipóteses, um controle corporal até então jamais visto para uma criancinha de 7 anos. A mãe filma ansiosa por colocar o vídeo na internet, nas redes sociais, e mostrar o quão é "engraçadinho" vê-la "rebolar até o chão" em um movimento de sensualidade incomparável para as meninas da mesma idade. Ela, a mãe, não está preocupada se a filhinha vai bem na escola. Está preocupada se sua filhinha aprendeu os passos corretamente para que ela possa desfilar mostrando ao público sua destreza corporal. O grande sucesso do carnaval que é a música que apela diretamente aos movimentos corporais - e que o compositor se deu ao farto trabalho de colocar algumas cinco ou seis palavras que façam sentido e que não sinalizem, em hipótese alguma, à inteligência ou ao menos à formação intelectual daquele que irá ouvi-la - é tocada de tal forma que até mesmo aquele que não suporta o ruído é obrigado a decorá-la. É quase como um estupro aos ouvidos do infeliz que não quer e nem almeja fazer parte dessa destoante e no mínimo constrangedora cena.
Os donos da mídia, os homens que controlam o Estado, as grandes corporações industriais, enfim, aqueles que detêm o controle das sociedades regozijam-se em seus iates e flats pouco se importando com a emoção da mãe que filmou sua filhinha com um celular parcelado para 12 prestações - atrasadas - tomando seus whiskies envelhecidos em que um simples gole já pagaria, pelo menos, 10 aparelhos celulares do mesmo da endividada mãe. Mas eles têm um interesse objetivo: o controle. Isso é fato. É muito mais cômodo, mais fácil inclusive, controlar aqueles que aceitam de bom grado esse cerceamento, essa limitação ou ainda essa despreocupação com a exposição no mínimo desnecessária de uma criança qualquer. Mas isso evidencia um controle? Talvez alguém que sofresse um processo de formação efetiva em uma escola não tivesse desenvolvido uma ideia dessas. Talvez ela se conscientizasse de que não ganharia efetivamente nada ao expor sua filhinha numa rede social de vídeos - ainda que, em função das muitas visualizações, ganhasse seus trocados, mas o certo é que os donos da mídia, sem sombra de dúvida, estariam ganhando muito mais. Talvez ela nem fosse tão descuidada ao colocar seu aparelho celular parcelado para 12 prestações e decidisse pagar o valor mínimo no cartão de crédito pagando juros escorchantes de quase 400% ao mês para manter o padrão de vida esnobe e ostentoso dos homens que controlam as grandes corporações bancárias. Por isso que nos dias de hoje é extremamente rentável manter as massas estultificadas. A burrice dá lucros e faz valer aquele velho ditado: "o mundo é dos mais espertos!".
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